Notícias

O som que não pode silenciar: a luta pela memória da batucada no Maranhão

publicado: 15/07/2025 15h40, última modificação: 15/07/2025 16h08
O som que não pode silenciar: a luta pela memória da batucada no Maranhão

Nas ruas de terra batida, nos terreiros das comunidades quilombolas, nas vielas das cidades do interior e nos centros culturais urbanos, ecoa o som da batucada: ritmo que embala, há gerações, o carnaval do Maranhão. Para registrar essa herança vibrante e garantir sua memória para as próximas gerações, a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em convênio com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), deu início a uma pesquisa inédita para realizar um levantamento das brincadeiras tradicionais do Carnaval, especificamente focado na batucada.

O som do batuque, com sua característica marcante, é o elemento que une os três principais tipos de brincadeiras carnavalescas: as turmas de samba, os blocos tradicionais e as escolas de samba. A pesquisa identificou uma correlação no processo de evolução histórica, em que algumas turmas deram origem a escolas de samba, que, posteriormente, transformaram-se em blocos tradicionais. Devido à magnitude do trabalho e para ampliar a compreensão das descobertas, o estudo ganhou uma nova etapa com o inventário. 

Desde 2023, o projeto, coordenado pela professora do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular (GP Mina), Marilande Abreu, já percorreu 44 municípios maranhenses, alcançando mais de  cem comunidades, produzindo um levantamento etnográfico que integra um novo modelo digital do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). 

No processo, a equipe ouviu as histórias dos detentores de saberes tradicionais. Em cada cidade visitada, várias entrevistas foram realizadas, principalmente, em comunidades rurais e quilombolas, com mestres da cultura popular, familiares de fundadores, gestores culturais e lideranças comunitárias para entender melhor sobre o histórico das brincadeiras. Para Marilande, ouvir a emoção dos brincantes, ao falarem sobre suas experiências, foi uma vivência profundamente marcante.

“A emoção que suscita às pessoas mais idosas que nós entrevistamos, que estavam à frente dessas brincadeiras, há cinquenta anos, sessenta anos, quando iam nos relatar na entrevista, eles choravam, se emocionavam. E essa emoção, esses afetos acionados ali têm a ver com a memória e história do grupo ali colocada. Esse foi um dos elementos que me marcaram bastante”, relatou a professora.  

Memória e significação  

Muito além da mera diversão, as brincadeiras se integram a festividades que resultam de um longo processo histórico de formação da sociedade brasileira. Envolvem, com alegria, a tradição do catolicismo popular e expressões afro-indígenas, compondo um amplo e vibrante ciclo de festas populares que marcam o calendário cultural de comunidades rurais e urbanas no Maranhão. Assim como o bumba meu boi, o tambor de crioula, a Festa do Divino Espírito Santo e o Baile de São Gonçalo, o carnaval assume um caráter ritualístico, sendo um momento de celebração coletiva imerso em devoção.  

O elemento principal que inspira as festividades, como explica Marilande, é o próprio cotidiano. “A história da comunidade está diretamente ligada à história dessas brincadeiras. Está relacionado com o trabalho deles como pescadores, como trabalhadores rurais. Geralmente, são grupos mantidos por eles próprios. Por exemplo, nas cidades de médio ou pequeno porte, essas brincadeiras vão ter temas, enredos que vão contar a história da cidade, muitas vezes, homenagear as pessoas que foram importantes”, explicou.  

Com esse olhar atento às raízes, a pesquisa avança na missão fazer essas vozes ecoarem também nas próximas gerações.

Em busca da valorização 

Apesar da grande importância sociocultural, as brincadeiras carnavalescas tradicionais, por décadas, existiram de forma quase solitária, sustentadas pelo esforço coletivo das comunidades, mesmo diante da falta de políticas públicas de incentivo. Em meio a essas dificuldades, as pessoas ainda se alegram em torno do batuque dos tambores. 

“Eles resistem a todas as dificuldades que existem. Por exemplo, os conflitos de terra, quando se trata de algumas comunidades que vivem conflitos de terra, desamparo de políticas públicas de cultura quando chega o período do carnaval”, pontuou Marilande. 

Nesse contexto, iniciativas como a da UFMA e IPHAN dão novo fôlego para o processo de valorização dessas tradições, sendo uma retomada importante para a conservação da cultura popular. Mais do que um levantamento técnico, a pesquisa  tornou-se um gesto de reconhecimento e escuta. Ao mapear essas brincadeiras, o projeto também ilumina as histórias de luta e pertencimento do povo maranhense. 

“O inventário é uma primeira etapa, que é o reconhecimento da importância dessas brincadeiras para os grupos que realizam. [...]. Eles podem, se organizar, se fortalecer como grupos tradicionais e buscar resistir [...]. Pode ser o início do resgate dessa manifestação tradicional”, ressaltou a professora.  

A expectativa é que, a partir desse trabalho, os resultados sirvam de base para políticas públicas mais sensíveis às realidades locais e garantam que as futuras gerações não apenas herdem o som da batucada, mas também entendam seu significado e importância histórica.  

Para Marilande Abreu, as universidades desempenham um papel também de reconhecer a cultura e o conhecimento produzido pelas comunidades tradicionais.   

“Então, eu acho que um dos papéis da Universidade é exatamente esse de levar essas outras formas de saber e de existência para dentro da própria Universidade, tornando-se um lugar de troca, não somente o conhecimento acadêmico, científico, como a gente tradicionalmente pensa a Universidade, mas ela também, como um lugar plural de conhecimento”. 

Mais do que preservar o passado, é construir o futuro

Ao longo do trabalho de campo, uma percepção tem sido constante entre os pesquisadores: a importância de sensibilizar as novas gerações para que reconheçam o valor dessas manifestações culturais. Como ressalta a professora, um dos objetivos da pesquisa também é o de  estimular o olhar da juventude para a própria história. 

“Eu acho que uma das perspectivas importantes que o inventário aponta é que já existem jovens à frente. E esses jovens podem se tornar referência para a brincadeira, para as batucadas, para que eles possam chamar, sensibilizar a juventude das comunidades de uma forma mais ampla”.  

Para além do registro, o estudo se transforma em um elo entre passado, presente e futuro, garantindo que o som da batucada continue nas ruas, nas praças e nas memórias de quem ainda está por vir.

 

Por: Giovanna Carvalho

Produção: Ingrid Trindade

Fotos: arquivo pessoal

Revisão: Jáder Cavalcante

registrado em: