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Do soar das matracas maranhenses para a botânica local: pesquisadora da UFMA analisa como é produzido instrumento típico do São João do Maranhão
Ainda em ritmo de São João, a pesquisa acadêmica amplia os estudos dos elementos que fazem parte da tradição maranhense. Dessa vez, o trabalho foi dedicado na origem do instrumento que ecoa cultura, arrepia o corpo e acelera o coração de muitos maranhenses, a matraca. Sabemos que a matraca é um instrumento de percussão tradicional do Maranhão, feito com dois pedaços de madeiras e presente no bumba meu boi. Mas já parou para pensar que cada matraca tem sua própria "assinatura vegetal"?
Seguindo essa perspectiva, a estudante do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Zulma Guadalupe Alves Pinheiro desenvolveu um estudo intitulado “IDENTIFICAÇÃO BOTÂNICA DAS PLANTAS UTILIZADAS NOS RITUAIS RELIGIOSOS DE MATRIZ AFRICANA EM SÃO LUÍS, MARANHÃO", com orientação do professor e coordenador do Laboratório de Estudos Botânicos (Leb), Eduardo Bezerra de Almeida Junior, e coorientação da doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia (Rede Bionorte) Thauana Rabelo.

Segundo Zulma Alves, a ideia de estudar a relação entre as plantas e os instrumentos do bumba meu boi surgiu a partir da sua vivência nesse meio. “A ideia de estudar a relação entre as plantas e os instrumentos do bumba meu boi surgiu da minha vivência dentro da própria brincadeira. Sou uma pessoa diretamente envolvida com as manifestações culturais, e participo ativamente do bumba meu boi como brincante, estando presente nos ensaios, nas apresentações e no dia a dia da organização. Isso despertou em mim a curiosidade de entender mais sobre essas espécies, seus usos e o saber tradicional por trás da escolha de cada material. Estudar essa relação é uma forma de unir minha paixão pela cultura popular com o meu amor pela botânica e pela valorização do conhecimento tradicional”, compartilhou.
Os sotaques de matraca e da baixada são grupos de bumba meu boi que se destacam na presença das matracas, que, tradicionalmente, são confeccionadas com madeiras nativas. O ipê amarelo, o jatobá e a maçaranduba são as principais espécies utilizadas na produção desse instrumento, permitindo a diferenciação das características físicas e simbólicas, geralmente escolhidas por um saber tradicional construindo ao longo das gerações.

Nesse sentido, Zulma explica como as espécies são escolhidas. “A escolha das madeiras leva em conta diversos fatores. A sonoridade é central, os mestres e artesãos sabem exatamente qual madeira oferece o timbre ideal, seja mais seco, grave ou estalado, dependendo do sotaque do boi. Mas também entram em jogo a durabilidade, já que o instrumento sofre impactos constantes, e a disponibilidade da planta no território. Algumas madeiras são mais fáceis de talhar, outras resistem melhor ao tempo e à umidade. Em sua maioria, as madeiras são nativas do Maranhão e da Amazônia. Essa relação reforça o vínculo entre a manifestação cultural e o território. Ao utilizar espécies locais, os grupos mantêm uma relação de cuidado com o meio ambiente, muitas vezes, aproveitando árvores já caídas ou sobras de madeira”, contou a pesquisadora.
Os diferentes sotaques do bumba meu boi têm sonoridades e ritmos próprios, influenciando na escolha das espécies de madeira. O jatobá é comum no sotaque de matraca, visto que essa espécie possibilita batidas que produzem sons firmes e prolongados.
Do contexto cultural para o contexto laboratorial
O Laboratório de Estudos Botânicos da UFMA é um espaço dedicado para estudos da área de florística e fitossociologia de restingas e dunas, taxonomia de fanerógamos, etnobotânica e divulgação científica e atua para a conservação da biodiversidade da vegetação litorânea do Maranhão. Com a missão de contribuir com a formação dos estudantes na área de botânica, o LEB foi palco para a elaboração do estudo que contou com a participação de profissionais que trabalham na área da etnobotânica e com o apoio de especialistas em determinadas famílias botânicas.
Entre os métodos utilizados, a pesquisadora buscou coleções botânicas, bibliografia etnobotânica, entrevistas com comunidades locais e comparações com amostras de referência para auxiliar na identificação e no entendimento dos usos da madeira. Nessa perspectiva, Eduardo Bezerra enfatiza o intuito dos trabalhos que evidenciam a utilidade das plantas. “Quando pensamos nas matracas, é para mostrar que, até nas nossas festividades de São João, há a presença de planta, e não percebemos as variedades. Nós queremos trazer as curiosidades da planta para a pessoa falar ‘Como assim isso aqui é de um caule e eu nunca parei para prestar atenção?’, porque às vezes a gente não percebe isso. O nosso intuito é mostrar que tem plantas em todos os lugares, nós só precisamos saber reconhecer para entender e para valorizar”, pontuou.

A união da ciência e da cultura popular proporciona a visão e o entendimento de eixos que geralmente são despercebidos e desvalorizados, como argumenta Zulma Alves. “A etnobotânica nasce justamente desse diálogo entre ciência e saber tradicional. No nosso caso, a pesquisa não busca apenas identificar espécies, ela reconhece e valoriza os conhecimentos dos artesãos, que conhecem profundamente a natureza em virtude de sua prática e vivência. Quando a Universidade se aproxima com respeito e escuta ativa, ela amplia sua missão e contribui para o fortalecimento de culturas que resistem e se reinventam todos os dias”, afirmou.
Além dos “matraqueiros” — brincantes que tocam matraca —, maranhenses e turistas também utilizam a matraca para celebrar a cultura, mas geralmente não sabem a origem e o valor simbólico desse objeto. Com isso, Eduardo Bezerra esclarece o processo de produção da matraca. “Tem muita gente matraqueira, e, quando ocorrem as festividades, está todo mundo tocando matraca e estamos querendo chamar a atenção que ali são duas madeirinhas que vieram de um caule, que era uma planta e que tem todo um cuidado na hora de se preparar essa matraca, porque, dependendo da madeira, o som vai ser diferente, a textura, o peso vai ser diferente, os cuidados que vão ter com a matraca é diferente, para ter mais tempo de conservação etc”.
Os estudos para a pesquisa continuam, os pesquisadores buscam aprofundar a bibliografia com referências da literatura e pretendem conversar com artesãos que produzem matracas, possibilitando uma percepção ampliada sobre a temática.
A pesquisa é resultado do esforço e da mente sagaz da estudante e futura bióloga, Zulma Alves, que, por meio de suas experiências de vida, observou a essência de estudar um instrumento fundamental da tradição maranhense e suas raízes botânicas, que vão para além da nossa localidade. A matraca não se resume a apenas “dois pedaços de madeira que produzem um som”, ela representa a história de uma cultura marcada pelo conhecimento tradicional que, por meio do estudo desenvolvido, conquistou um espaço que documenta os saberes de sua confecção, fortalecendo a conexão entre cultura e biodiversidade.
Por: Aline Vitória
Produção: Sarah Dantas
Fotos: arquivo pessoal
Revisão: Jáder Cavalcante