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Discurso do reitor Natalino Salgado na cerimônia de entrega do título de Mérito Cultural

publicado: 18/12/2021 09h02, última modificação: 20/12/2021 14h52
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Senhoras e senhores,

Boa noite.

Ser justo com o passado e esperançoso quanto ao futuro é a postura salomônica que se nos impõe uma ocasião como esta, ainda mais nos estertores do segundo ano pandêmico que a humanidade atravessa e quando, por assim dizer, foi decretada a morte da presença, o encurtamento das ausências, o esmaecimento das fronteiras entre o que é virtual e real. Vivenciamos experiências multifacetadas e tecemos juntos o fio de um amanhã que parecia apenas fruto ficcional.

Para além dos ineditismos, a praga que a todos nós assalta e assola foi capaz de possibilitar à Universidade Federal do Maranhão a capacidade de ser altaneira e soberana num cenário que apontava para desolação: crescemos e nos engrandecemos ainda mais. O foco deste momento não é o apropriado para tecer considerações acerca de todas as inovações tecnológicas que alteraram substancialmente a vida de docentes, discentes, técnicos e terceirizados. Deixemos que os resultados de clareza solar se autojustifiquem.

Dentro desse amplo espectro de ineditismos, temos agora a entrega da honraria do mérito cultural às personalidades vivas e  in memoriam que tanto enriqueceram nosso estado nesse rico mosaico do imenso país chamado Brasil, que reflete a generosidade de um povo que canta e é feliz e é também um pouco de raça, que não tem medo de fumaça, como tão bem cantou Caetano Veloso.

Mas percebo, também, os riscos de Cila e Caribdis, como se nos jogando  entre os escolhos do Estreito de Messina. Resta-nos esperar que o destino nos volte a revelar a reação de um povo que sempre, nos instantes mais críticos, se aquietou, deixando-se consolar com as   toadas do auto do bumba meu boi que embalam a magia que o mês de junho carrega e que, em nossa nostalgia, impregnou ainda o multicolorido das saias das dançarinas do tambor de crioula — ambos bens culturais registrados pelo IPHAN como patrimônio imaterial brasileiro. À poesia de um povo, em seu poder de transformar a dor em alegoria, conforme nos presentearam dois mestres geniais maranhenses, João do Vale e Joãosinho Trinta, ainda resta espaço para o coração se emocionar e se alegrar com a voz de dona Teté a comandar seu Cacuriá. 

Ó Maranhão exuberante! Basta fechar os olhos e viajar pelo som das caixeiras na bucólica Alcântara, que ecoa todo maio por entre as ruínas centenárias.

Quem nunca se extasiou com a alegre coreografia dos blocos tradicionais, escolas de samba e brincadeiras de rua que transformam a Ilha dos Amores numa grande passarela a céu aberto, em sucessivos fevereiros.... Daí a dificuldade de escolher os nomes apropriados para serem laureados com tão augusta honraria.

Faltar-me-iam tempo e espaço para invocar as memórias da Rua da Golada, decantadas em prosa e verso na voz de João do Vale, uma das maiores estrelas de nossa constelação e um dos grandes ícones do baião, do maxixe e do xaxado, ritmos também reconhecidos, na semana passada, pelo IPHAN, na categoria de patrimônio imaterial brasileiro. 

A cantora baiana Maria Bethânia rendeu-se ao gênio maranhense e à sua ode ao carcará. Pedreiras encheu-se de orgulho, e a antiga viagem de trem de Teresina para São Luís do Maranhão ganhou uma canção memorável que todos nós, fazendo questão de reconhecer, entoamos: “modéstia à parte, seu moço, minha terra é uma belezinha”. 

Da Rua do Norte para o mundo, nossa Alcione brilha, fiel ao seu destino; e quando entoa os versos de Humberto de Maracanã na famosa toada que louva o Maranhão, somos todos irmanados por esta Terra do Babaçu que a natureza cultiva. Vamos além: somos herdeiros de uma complexa e sofisticada tradição artístico-literária, cujos expoentes dão nome a algumas de nossas ruas, praças, escolas, teatros e prédios públicos.

Senhoras e senhores,

Os vinte nomes aqui hoje reunidos para receber essa distinção foram escolhidos de acordo com os rígidos critérios adotados quanto ao fortalecimento da arte em suas mais variadas expressões, seja na música, pintura, literatura, artes plásticas e arte popular. É certo que poderemos até cometer injustiças, pois que podem falhar o coração e a memória humanos. Mas este grupo aqui presente com certeza carrega dentro de si essa chama que faz ultrapassar a mera existência. Como disse o padre Antônio Vieira, nos dias em que não fazemos nada, apenas existimos, não vivemos. 

Este momento tão solene me fez lembrar os pilares que concebem a cultura como um aspecto essencial nas nossas existências, o fato de que foi por meio da cultura que nos tornamos humanos. A humanidade, como concebida atualmente, tem na cultura e nas referências culturais seu porto seguro, quando pensamos em história, memória, identidade, sociabilidade e inclusão social. 

A cultura permeia todos os aspectos de nossa existência, desde os mais simples e cotidianos até os mais sofisticados processos humanos. A cultura está nas expressões de fé, nas manifestações, celebrações, festividades, ritos e crenças. Está também nos modos de fazer e agir, nos ofícios tradicionais, nos conhecimentos ancestrais, nas belas artes e artes aplicadas. A cultura está nos espaços sagrados e religiosos, nas feiras, no comércio, nas praças, museus e espaços de memória.

Logo cultura é Universal, Central e Transversal. Universal, pois nos acompanha independentemente do lugar, país ou continente. Ela é Central, pois é a alma das civilizações atemporais e nos acompanha todos os dias, onde quer que estejamos. E a cultura é transversal, pois nos atravessa nos menores gestos, dando coesão social e sentido ao que é ser humano. 

A cultura é, por assim dizer, a mais elevada expressão da criatividade, que, ao mesmo tempo, possibilita o reconhecimento recíproco de traços distintos e aproxima a singularidade à coletividade. É ela que atravessa, incólume, os umbrais da perenidade e é herança e memória de antepassados que o futuro pode e deve preservar.

Mesmos nestes anos paradoxais, nos quais as manifestações presenciais foram suspensas, as ações culturais não se quedaram inertes. Redimensionaram-se, porque, no dizer de Gullar, a arte existe porque a vida não basta. As vozes que cantam ocuparam outros palcos, o teatro invadiu as plataformas virtuais e os discípulos de cada uma das expressões culturais buscaram outras plagas. Sobreviveram.

Mas eu também gostaria de abordar a questão da cultura na perspectiva de uma máquina que fabrica futuro. E, como máquina, deve ser encarada pelos governantes e cobrada pela sociedade como um instrumento que permite o desenvolvimento de uma série de ações que redundem em crescimento, desenvolvimento e aprimoramento, não apenas no aspecto econômico, mas também humanístico. Políticas culturais não se resumem a renda, emprego, inclusão, mas têm que ser encaradas como um motor para a promoção da humanidade e a diversidade das pessoas e povos. Longe da visão míope que teima em distinguir o que pode ser ou não considerado cultura, é preciso olhar para seus fazedores: veem o invisível, abraçam o desconhecido, inauguram e reinventam mundos.

A cultura, afinal, nos define, mostra a nossa cara sem meios tons e expressa nossa alma. Aqueles que nesta solenidade serão agraciados nos representam e nos traduzem. Traduzir -se, aliás, é um dos poemas mais conhecidos de nosso perene Ferreira Gullar, que, em seu ofício, questiona: “Traduzir uma parte na outra parte / — que é uma questão de vida ou morte — / será arte?”.  Sim, a vida que abarca a morte e nela não se encerra, é arte. Arte que vislumbra o visível e o ressignifica e que em nós aguça as percepções.

Cultura é linguagem, semântica. Imaginem nossos ancestrais em cavernas que, em sua concepção de mundo, precisavam explicá-lo. Desenhos zoomórficos, antropomórficos e símbolos que, talvez, representassem palavras, contavam histórias e ali, em paredes de rocha, ficaram indeléveis eternizando pessoas como nós.  Cultura é comunicação e expressão da alma, de nossos sentidos, de nossas emoções. Comunica até mesmo o que não pode ser dito em palavras e, nesse sentido, são abertas, como se identificassem com cada olhar que lhes seja dado. Ao mesmo tempo, a cultura é a linguagem única de quem a cria.

Destacar pessoas que fazem da cultura e da arte nossa melhor expressão de humanidade é, portanto, um reconhecimento de nosso patrimônio imaterial, ainda que materializado em tinta, escultura, palavras, música, performance. De uma certa maneira, a cultura nos registra no tempo. A maioria das culturas humanas são percebidas pela arte produzida por seus contemporâneos. Eles lidam com a forma e criam uma identidade. Percebem sua realidade e lhes dão sua leitura e assim se tornam conhecidos, como as colunas gregas Dórica, Jônica e Coríntia, às quais se denomina “ordens” e como “ordens” descrevem cada qual uma forma e o tipo de decoração que pretendiam, dando-lhes função prática de sustentar e embelezar. Assim é a arte.

Arte é, nesse sentido, a alma de um povo. Ela estabelece um diálogo com e entre nós. Alguns a resumem em um sentido de ideal estético, mas, assim, entendo, ela se distancia de todos. Elitiza e cria um gueto fechado daqueles que podem apreciá-la ou entendê-la. Apenas iniciados são capazes de dialogar, quando ela deve alcançar todo olhar e nele se revelar.

Além dos historiadores, que registrarão as incontáveis possibilidades de leitura da pandemia, mas que, por sua natureza estarão circunscritos aos ditames da ciência histórica, quem contará as experiências do distanciamento, do silêncio, do medo, da vivência do desconhecido que nos irmanou nestes dois últimos anos? A verdadeira revelação está nas mãos dos artistas que contarão a meta-história do que aconteceu na realidade invisível das experiências pessoais.

Aristóteles (384 – 322 a.C.) dizia que a arte mimetiza a natureza (mímesis) ou a imita de alguma forma e, segundo o filósofo, até mesmo a completa. Ora, aquilo que o ser humano completa na natureza é sua própria forma de lidar com ela, aprendendo sobre e repetindo de forma útil. Completar também pode ser entendido como a capacidade de domínio que dá vazão à criatividade, dando funções e razões para o objeto que ele, naturalmente, não tinha.

O próprio Deus, em Gênesis, ao colocar o homem no Jardim, dá-lhe duas funções: a primeira diz respeito à responsabilidade. O homem deveria zelar pelo lugar. A segunda toca nesta habilidade fascinante, que é a criatividade. Ao homem foi dito: faça plantações. Cultive à sua maneira. Crie coisas novas. Use seu potencial.

Dessa forma, quando, aqui, neste solene momento, nos reunimos, estamos mais que reconhecendo talentos que nos emprestaram olhos para ver e corações para sentir. Estamos celebrando o dom, a graça e a virtuose que são marcas que se sobrepõem a toda maldade e desencontro entre os seres humanos.

O artista cria uma linguagem universal. Bem disse Leon Tolstói: “se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”. Essa ideia define à perfeição a linguagem da arte, a universalidade da compreensão que ela permite eliminar todas as fronteiras e barreiras de raça e cor, de idioma e condição econômica entre os seres da espécie humana. A arte é a única forma de expressão que legitima, distingue e confirma a criatura humana como criada à imagem e semelhança do Criador. 

Senhoras e senhores agraciados,

Vós sois Janus, neste momento, passado e futuro que se entrelaçam e irmanam neste presente, no grato reconhecimento em que, a despeito de quaisquer falhas humanas, lhes fazemos jus, na espera graciosa de outras indeléveis realizações. 

Muito obrigado!

 

Revisão: Jáder Cavalcante

 

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