Notícias

Um corpo que sara outros corpos

publicado: 07/06/2021 14h43, última modificação: 07/06/2021 14h43

Cristãos católicos do mundo inteiro celebraram na última quinta-feira o dia de Corpus Christi, cuja tradução literal é o Corpo de Cristo. A data se reveste de especial significado, pelo fato de que vivemos em dias marcados pela dor e desespero, aflição e agonia. 

 O coronavírus redesenhou a geografia humana. Os corpos de conhecidos e desconhecidos se despedem desta existência terrena: parece-nos que falta terra para sepultar tantos mortos. Aqueles que um dia andaram entre nós, sorriram, amaram, fizeram feitos extraordinários – ou não – agora jazem inertes num corpo que, rápido, deteriora-se, caso fique exposto. 

A outros, curados e restabelecidos, resta a obrigatoriedade de fazer valer a breve existência com mais significado. Redivivos, que invistam tempo e talento em algo que de fato importe. Mesquinharias e outras pequenezas da alma devem ser esquecidas: o mundo é tão grande, como constata Drummond, mas a vida é curta.

No Evangelho de Lucas, o Cristo, prestes a ser crucificado, reúne seus discípulos ao redor da mesa-despedida e, ao distribuir o pão, ordena: “este é meu corpo, comei dele todos”. A ordem é para o coletivo, embora o pão vivo que desce dos céus, como diz o evangelho joanino, seja apenas um. O pão - que alimenta o Espírito - produz vida na carne.

Rubem Alves, em seu maravilhoso texto homônimo à festividade, traduz em poesia o mistério de um Deus que se encarna e que se funde com a matéria. Para o cronista, muito mais significativo é o corpo que se esvai para que a alma imortal prevaleça.  “Por isso me alegrei com esta festa de nome latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. (....) Mas este dia, Corpus Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu que o bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o testemunho do apóstolo. Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Porque as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina. Curioso que os homens prefiram os céus, quando Deus prefere a terra”.

São Paulo, na segunda epístola aos Coríntios, fala da deterioração certeira do corpo e nos consola: “Por isso, não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia.” Acredito que este seja o objetivo do Criador, tão sábio em colocar nossas vidas em um invólucro que se desgasta e envelhece, mas que tem o dom de renovar o que carrega dentro de si.  

E aos que acreditam e seguem as sagradas escrituras, há ainda a consolação paulina, desta vez na primeira epístola aos Coríntios (15:38): “Mas Deus dá-lhe o corpo como quer, e a cada semente o seu próprio corpo”. A cada vida, uma oportunidade de ser e fazer algo que seja relevante. O corpo do Filho de Deus, entregue como sacrifício, foi a semente que originou a possibilidade de uma colheita cheia de grandeza.

Corpus Christi é saúde para os males da alma e vigor para corpos abatidos. Para estes dias, em que a incerteza é constante, a lágrima abundante e o medo reinante, que a consolação do Corpo de Cristo seja promessa de união, de resgate, restauração, de libertação e renascimento. 

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em 5 de maio de 2021, em O Estado do MA

registrado em: