Notícias

Tempos estranhos

publicado: 06/09/2022 08h00, última modificação: 02/09/2022 11h54
Artigo do Reitor.jpeg

Os futurólogos do passado foram capazes de antecipar muito da realidade que vivemos no presente, mas não tudo, obviamente. Em especial a velocidade das mudanças a que estamos submetidos e o modus operandi de como viver no ambiente virtual que nos arranca da realidade física e impõe a nova forma de apreender o que nos cerca.

A distância física que não é mais barreira nos obriga a driblar as astúcias da tecnologia que ameaça a existência dos segredos e dos sigilos. Leio nos jornais que um dos mais populares aplicativos de conversação, o WhatsApp, vai ofertar aos seus consumidores três possibilidades que estavam sendo requeridas: a de sair dos grupos de forma oculta; a de controlar o status on-line/off-line para que o usuário tenha privacidade e mais controle sobre quando e a quem responder; a de decidir quem pode ou não printar fotos e conversas, mecanismo ameaçador do sigilo de alguma informação.

Tempos estranhos da adaptação instantânea, sob pena de ficarmos à beira da assimilação das fronteiras da realidade pela virtualidade. Tudo é gerado em função do aqui e agora, pela centralidade da pressa que tem alterado a noção de espera. Porque ninguém mais aguarda tempo algum por nada e a celeridade tornou-se critério de qualidade.

Mas certos temas persistem, a exemplo da velocidade das descobertas que nos fizeram atravessar com certa brevidade esse pesadelo denominado pandemia: vejo ainda que, por conta da ameaça da Monkey Pox, a assim denominada varíola dos macacos, a recomendação é que a população volte ao uso das máscaras, do álcool e do distanciamento social. Teorias conspiratórias voltam a circular e o pobre do animal, assim como aconteceu com os morcegos para a Covid 19, tem sido caçado em algumas regiões do planeta. 

Marca também o estranhamento deste tempo, a guerra da Rússia contra a Ucrânia que continua fazendo vítimas entre civis inocentes; a crise hídrica que assola a Índia; um ano do domínio do talibã no Afeganistão e o sofrimento do povo sírio, notícias que trazem o longe para mais perto, enquanto todos nós estamos mais interconectados do que nunca, principalmente nos dramas sociais que permanecem.

No campo da literatura, Zadie Smith traduz, como poucos escritores, a visão desse estranho, dito novo ou renovado mundo, no qual transitamos entre o que se foi, o que ainda é e o que nunca se supôs que seria. Em seu romance Dentes brancos, a escritora traça um cenário onde subsiste o multiculturalismo e as diversas interações raciais, cujo passado vem cobrar sua fatura no presente, tudo isso marcado por povos de todos os pontos do planeta.

Indico ainda uma espécie de “manual para o presente”: a obra do dominicano radicado nos Estados Unidos, Junot Díaz, A fantástica vida breve de Oscar Wao, relançado recentemente. Poderia até dizê-la bem humorada ao tratar das desventuras de pessoas originárias de países diversos, na busca de um objetivo comum, num mundo que se oferece acolhedor para os que o assimilam rápido.
Não adianta resistir à estranheza deste presente, porque o tempo é incólume e implacável com os que o ignoram. Se assim o fizermos, bloquearemos o novo que sempre haverá de vir.

Adaptar-se, tratando o passado como matéria prima das inovações e preservando-o em parte, para transformar o todo, é o que nos resta para termos esperança de que, se ainda não deu certo, um dia dará. 

 

Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA
Professor Titular da UFMA
Médico Nefrologista
Membro da Academia Maranhense de Letras
Membro da Academia Nacional de Medicina

registrado em: