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Somos todos Saudades
Repentinamente, como se nada mais escatológico pudesse nos assustar ou mesmo nos retirar da terrível rotina de mortes e consequências que a pandemia nos trouxe, somos literalmente nocauteados por uma notícia absolutamente estranha aos nossos jornais, já tão cheios de notícias ruins que, de tanto ouvi-las, nos amortecem os sentidos.
O nome da cidadezinha não poderia ser mais pitoresco: Saudades, no interior de Santa Catarina. Apenas ouvir a nossa riquíssima palavra, ainda mais no plural, sentimos um quase desejo de conhecer o lugar. Quem espera o mal de um lugar com esse nome?
Como será de praxe, as autoridades investigarão e farão seus relatórios e a justiça será acionada para executar seu trabalho. Mas, diante de uma tragédia inominável, as razões – que devem ser apuradas – são o que menos queremos ouvir. Nosso senso de justiça clama, mas nosso coração está com os três bebês que foram mortos e as duas professoras.
É como se não houvesse espaço e tempo para outra coisa. A dor ocupa todo o espaço mental e emocional. Queremos chorar apenas e só depois haverá tempo para fazer as perguntas que jamais terão respostas: por que alguém faria isso? O que levou o homem a realizar atos tão selvagens? E outras tantas que, ainda que o próprio perpetrador falasse, não seriam suficientes.
Ao pensar sobre essa notícia, que parece vir de um lugar longínquo, talvez porque Saudades nos evoque tanta coisa pessoal, como se nos levasse para mundos que só nos habitam na mente e jamais a ele retornaremos, a sensação de impacto não é menos real e contundente.
Lembrei da Hanna Arendt e um de seus conceitos mais conhecidos e igualmente polêmicos, pois a muitos pareceu que a filósofa atenuava o mal praticado ou lhe dava uma desculpa. Mas o ponto dela nunca foi esse. Em 1961, ela cobriu um dos julgamentos judiciais mais espetaculares que ocorreu a um nazista, o de Adolf Heichmann, em Jerusalém, como o gerente da “Solução Final” do Holocausto. Arendt percebeu naquele homem banal e nem tão inteligente assim, a simplicidade com que ele encarava seu “trabalho” que era nada mais, nada menos, que pensar estratégias industriais e logísticas de matar o maior número de pessoas possível, apenas porque recebeu ordens superiores.
O mal supremo estava no cotidiano. Alguém que sai de casa, vai até a empresa onde trabalha, bate o ponto, cumpre seu papel e volta para casa no final do dia. Em Saudades, o mal estava à espreita, formando-se num homem de 18 anos de quem se tem as primeiras informações como alguém problemático, sem rede de relacionamentos saudáveis, que sofria bullying, na escola, era recluso e viciado em jogos eletrônicos. E ultimamente maltratava animais, como num ensaio macabro sobre o que sua mente doentia abrigava.
Mas essa descrição é tão lugar comum que parece remake de filmes baratos de terror. Alguma coisa como A Hora do Pesadelo, sem a máscara do assassino. A descrição do homem banal aqui não justifica a crueldade cometida, apenas sinaliza para nosso coração assustado que, mesmo no lugar mais insuspeito, sabe que o mal é sempre uma possibilidade.
Em Saudades, a pequena e pitoresca cidadezinha do interior de Santa Catarina, experimentamos o exemplo excepcional de uma tragédia de mortes não anunciadas, numa pacata cominidade e, por isso mais impactantes, dolorosas e traumáticas. Sofremos agora juntos como povo. Somos tocados, porque, de algum modo, eu como avô e pai, me coloco no lugar dos pais que perderam seus filhos pequenos. Mas, igualmente, sentimos a perda da jovem promissora e da professora veterana que há dez anos cuidava dos filhos das pessoas em sua cidade. Somos humanidade. E agora, todos somos dor, em Saudades.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 08/05/2021