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Quando a arte imita a vida

publicado: 21/06/2021 12h40, última modificação: 21/06/2021 12h40

Vivemos um presente tão estranho que muito se parece com a ficção imaginada pelos melhores roteiristas e escritores do gênero. De repente, além das máscaras, distanciamento social e uso constante de álcool em gel, aqueles que vivem em São Luís também passaram a incorporar, em seu olhar diário, a enorme quantidade de filas formadas nos pontos de vacinação, fotos nas mídias sociais e relatos, em profusão, do mal-estar daqueles que foram imunizados. De fato, o novo normal alterou completamente nossa forma de existir.

E, na contramão do que estávamos acostumados, deparamo-nos com esta nova realidade que nos traz uma série de excelentes títulos que foram lançados, permitindo-nos olhar, sob nova perspectiva, o flagelo que a todos nos atinge, com menos estranhamento.

Para iniciar: Expresso do Amanhã, em nova versão. Os mosis, série francesa. Black Mirror - que já não é tão novo, mas antecipou muita coisa. Zona de Separação, série espanhola. Os infanto-juvenis Sweet Tooth e Amor e Monstros. A revisitação do gênero zumbi, Army of the Dead. São séries/filmes bem recentes do catálogo Netflix que exploram futuros distópicos, resultantes de hecatombes ou, mais comum ainda, pandemias catastróficas de vírus.

Em particular, o mundo retratado em Sweet Tooth apresenta uma fábula que trabalha com preconceito e peste, tudo ao mesmo tempo. O preconceito ao diferente – que remete à frase de Sartre, “o inferno são os outros” – o que julgo ser a causa da desgraça que sobre todos se abate; a peste que segrega, que mata (primeiro alma e mente), que revela corações mesquinhos e engrandece os verdadeiros heróis. Com atuações dignas de aplausos, a série fala de um flagelo que poderia bem se chamar de Covid-19. 

Já a série Zona de Separação fala de outra faceta revelada em tempos sombrios – o fosso entre pobres e ricos e a tentativa desesperada de políticos, vendendo como bondade aquilo que não passa de obrigação. Mentiras vendidas como verdades, desespero e medo como combustíveis e a liberdade restrita até não mais poder, em troca da falsa sensação de segurança.

Além desses, há muito que outras obras da tela grande trouxeram em seus enredos doenças terríveis que, praticamente, acabaram com a civilização como Eu sou a lenda, Contágio, Extermínio, Epidemia e um já tornado clássico, Os Doze Macacos. Livros e cinema, juntos, têm realizado os maiores exercícios de futurologia, como se obras proféticas que, à parte os exageros próprio das ficções para vender, vamos chamar de licenças dos gêneros fantástico e maravilhoso, baseiam-se em possibilidades que a pandemia de Covid19 está provando como verdadeiras.

Pesquisadores há muito alertavam para essa possibilidade. Inclusive, entre todos as possibilidades, os vírus associados à gripe foram sempre campeões de citação, devido a sua impressionante capacidade adaptativa e possibilidade de variação. Ademais, a sua forma de contágio é extremamente rápida devido às possibilidades de contato humano que, nos grandes centros populacionais, se torna muito mais fácil.

Os filmes põem a vida nas telas. Sobre isso agora há, afinal, uma mensagem mais concreta sobre o que nunca foi documentado com tanta tecnologia, ciência e arte antes, pois, nos últimos cem anos, a sociedade humana jamais viveu do mesmo modo algo tão desafiador. O desafio, no entanto, cutuca o gênio humano que sobreviveu aos últimos duzentos mil anos por sua proverbial capacidade adaptativa via criatividade.  A disponibilidade em tempo recorde de vacinas é uma das mais incríveis façanhas científicas a que pudemos assistir nos últimos anos. Países diversos investiram no desenvolvimento científico e, devido a esse esforço, muitas vidas estão sendo salvas e, por pouco, não teria sido pior do que está sendo.   

Embora não saibamos quando haverá um fim para tudo isso – lembro de Camões, que nos conforta ao dizer: “os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos”. Recomendo a adoção de novas práticas, enquanto atravessamos com paciência essa terrível tempestade, ou seja, a adesão ao protocolo sanitário que preserva e salva vidas e à solidariedade e compaixão com os que sofrem doenças e perdas. Para preservar a saúde emocional, uma rotina – na medida do possível - de consumo das produções mencionadas, que por si só têm o condão de abrir os olhos, tocar a alma e reinterpretar a própria existência.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em 19/06/2021, em O Estado do MA

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