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Por uma chuva de fé

publicado: 24/04/2021 00h00, última modificação: 23/04/2021 21h33

Em uma simples conversa, qualquer pessoa pode identificar que as preocupações do brasileiro, focadas – nos tempos normais – em sustento e moradia, segurança e saúde, sofreu uma mudança radical, no último ano. Pesquisa do Instituto Ipsos – Empresa Internacional de Pesquisa – a pedido do Fórum Econômico Mundial - revelou que 53% dos brasileiros concordaram que sua qualidade de vida piorou nos últimos doze meses.

Nosso país não está entre os primeiros dessa triste lista. Itália, Hungria, Chile e Turquia nos antecedem. Parece que condições anteriores de turbulência social e econômica favorecem uma predisposição para esse quadro mais grave. É o caso de cada um desses países, independentemente dostatus anterior de qualidade de vida.

O mesmo instituto Ipsos realiza semanalmente o Tracking the Coronavirus – rastreando o coronavírus em tradução literal – que envolve dezesseis países, entre os quais o Brasil. Houve um substancial aumento de ansiedade em nossa população. É o que os dados de pesquisa de maio de 2020 revelam. Segundo o Ipsos, as mulheres sofreram o impacto maior (49%), enquanto 33% dos homens disseram que estavam lidando com o problema naquele momento.

Pesquisas da Fiocruz e de mais seis universidades, também no ano passado, identificaram que 40% da população brasileira adulta apresentavam sintomas compatíveis com depressão e 50%, com ansiedade. Estes dados são consistentes com uma pesquisa anterior (2017) da Organização Mundial de Saúde (OMS) que relatou o Brasil como o país mais ansioso das Américas, com 9,3% de sua população apresentando sintomas, ou seja, 18,6 milhões de pessoas depressivas ou ansiosas.

Eis em números aquilo que nossa sensibilidade tem percebido cotidianamente. Mesmo sem parâmetros precisos que os institutos possuem, constatamos o crescente nível de ansiedade nos amigos à volta, disfarçados aqui e ali de comentários negativos e de olhares desesperançados.

Álvaro de Campos – um dos heterônimos de Fernando Pessoa – em seu poema “Adiamento” - se nos aponta uma saída para esse tipo de mal-estar: adiar supostas sofridas dores que nos aguardam no amanhã. Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...levarei amanhã a pensar em depois de amanhã. E assim será possível; mas hoje não...No mais das vezes, adiamos um problema que talvez nem chegue e, mesmo assim, sofremos por antecipação.

Mas, mesmo quando o presente se mostra assombroso e o futuro, incerto, ainda assim, em nome da boa saúde, convém viver cada coisa no seu tempo. Machado de Assis nos aponta outra receita: passado, presente e futuro devem coexistir harmonicamente na mente humana. Quando um deles é priorizado e os demais são totalmente esquecidos, surge uma espécie de desequilíbrio, ou, no mínimo, a hipótese de que algo não está correto, não está bem. Antecipar os problemas do futuro – que, na realidade, é uma grande incógnita – é a matéria-prima da ansiedade. Essa rouba o presente e compromete o dia seguinte.

Aconselho focarmos no combate apenas ao insidioso inimigo invisível que é o vírus causador desta terrível pandemia. O outro, não mensurável, pode ser evitado com uma postura de resiliência, paciência e crença de que o amanhã poderá ser um dia melhor. Entre todos os conselhos, destaco o de Mateus (6:34): portanto não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal. Ele também sugere, em seu evangelho (6:27) que, por mais que estejamos ansiosos, ninguém pode acrescentar um côvado ao longo de sua vida.

Por isso, enfrentar estes tempos pandêmicos com ansiedade e depressão só aumenta a sequidão do deserto que estamos atravessando e multiplica seus efeitos colaterais. E que a fé nos traga os melhores efeitos da chuva.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em 24/04/2021, em O Estado do MA

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