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Páscoa e revisão de valores
Eis que chegamos novamente ao domingo de Ressurreição e, infelizmente, o cenário pandêmico não foi alterado. No ano passado, isolados, e ainda às cegas quanto ao que estava acontecendo, celebramos esta efeméride da fé cristã de forma completamente atípica. Um ano depois, permanecemos quase igual – afora a boa nova das vacinas e das pesquisas que avançam.
Por muitos anos, a humanidade lembrará desta pandemia e de todas as vicissitudes que a acompanharam. Diferente das outras que assolaram o planeta, esta tem o diferencial de ser a mais difundida e suas consequências catalogadas, graças à propulsão das mídias sociais.
Não por acaso, a Páscoa é, em si mesma, um exercício de memória. Foi assim quando da saída do povo hebreu da terra do Egito, de uma condição de escravos para uma liberdade nunca experimentada por aquela geração. O rito inaugural é um símbolo a ser repetido, para que os descendentes jamais se esquecessem da condição de onde eram oriundos e, ao lembrar, fossem gratos a quem fez tudo aquilo. Quando de seus últimos momentos nesta existência terrena, Cristo, prestes a ser crucificado, reúne discípulos em torno de uma mesa para celebrar uma fraterna ceia, recomenda que o mesmo gesto fosse repetido até que Ele retornasse: “Fazei isso em memória de mim”.
“A gratidão é a memória do coração”. Esta frase, atribuída ao filósofo grego Antístenes, ensina-nos que, se somos gratos porque estamos bem, com saúde e em paz, não devemos nos esquecer de que a vida humana não é um dado isolado, assim como a liberdade também não o é. As duas ocasiões-símbolo da Páscoa, nas sagradas escrituras, apontam sempre para o coletivo em unidade. Da condição de escravo não foi liberta apenas uma pessoa, mas um povo. Por causa da separação, naquela condição de filhos distantes, Cristo reconcilia toda a humanidade com Deus, ofertando uma vida com significado para todos os que assim creem.
Se o sofrimento é sempre um encontro consigo mesmo, como pensa Clarice Lispector, o resultado desse encontro é uma ação para e com o outro. Despertar-se para uma vida de mais solidariedade, fraternidade e compaixão é um chamado e uma decisão nesses tempos tão difíceis, onde as lágrimas são abundantes, o luto é constante e o medo é dominante. A pandemia desperta as pessoas para o espiritual e a Páscoa é o tempo de viver o transcendente, que requer novas formas de pensar e viver.
A Páscoa fala de uma morte, mas ela é, acima de tudo, a ressurreição. Isso, se bem entendermos, será uma fonte de esperança e com ela somos levados à coragem de enfrentar a própria morte. Sobreviver à covid, por outro lado, acorda essa sensação de esperança e gratidão e revela, talvez como nenhuma outra experiência, a verdade sobre nossa mortalidade.
Conforme disse o poeta inglês, John Donne (1572-1631), “Nenhum ser humano é uma ilha completa em si mesma; cada um ser é uma parte do continente, uma parte do todo. A morte de cada ser humano me diminui, porque faço parte da humanidade. E por isso não me perguntes: Por quem os sinos dobram. Eles dobram por nós”.
Estar diante da mortalidade em massa revisa valores, rearranja objetivos, nos dá a certeza do que é realmente importante: pessoas e não coisas. A Páscoa expressa o amor e a confiança de que o Cristo que ressuscita confere a mesma Graça aos que n’Ele confiam. Que não nos esqueçamos do partir do pão e da comunhão nesta data que precisa se tornar prática diária. Nenhum homem está em paz, se seu semelhante sofre por falta de saúde e liberdade.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 03/04/2021