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Olhe para todos os lados (II)
No artigo anterior, teci uma série de considerações acerca do filme Não Olhe para Cima (Don’t look up) e sua verossimilhança com os fatos que ainda enfrentamos. Passadas duas semanas do lançamento, os desdobramentos da película continuam envolvendo uma gama incrível de interessados, inclusive religiosos.
Este é, sem dúvida, um atestado do sucesso do filme. Penso que uma obra de arte sempre carrega esta pretensão: a de provocar a discussão, o pensamento, a reação do público. Uma obra de arte alcança seu mérito maior não só pelo virtuose da arte representada, mas também pelo despertar da atenção das pessoas para um tema que a arte desvela, evocando muitas vertentes de julgamento e apreciação, como consequências não previstas.
Li artigo interessantíssimo na revista Questão de Ciência, escrita pelo jornalista editor Carlos Orsi e a microbiologista Natalia Pasternak. Eles definem o filme como uma comédia, cuja característica fundamental é o exagero da caricatura. Neste caso, permite identificar personagens e, ao mesmo tempo, retratar uma realidade, projetando-a em uma imagem distorcida.
Cientistas, políticos e a mídia, todos são mostrados de forma caricaturesca. A dupla de apresentadores de um jornal é levada ao limite de um tipo de ignorância sofisticada pela busca desenfreada de audiência, o que faz com que seu jornal transforme as notícias mais difíceis em algo leve e até engraçado, numa espécie de produção queseria cômica se não fosse trágica.
A questão mais interessante, a meu ver, que o artigo (O ridículo da comunicação da ciência em ‘Não Olhe para Cima) destaca é exatamente o processo de comunicação da ciência com o público em geral. Em 2015, Bill Gates afirmou, em uma palestra TED, que viveríamos uma pandemia de gripe. Em uma entrevista, quando foi lembrado sobre este vaticínio científico, ele respondeu que ninguém poderia prever o “quando”, mas a comunidade científica sabia que aconteceria com um vírus da influenza ou outro que ataca o sistema respiratório.
Imagino que a maioria das pessoas assistiu ou leu sobre isso e deve ter duvidado ou sequer conseguia conceber a hipótese. A ciência, naturalmente, não pode precisar os fatos com exatidão de cem por cento – como alguns exigem - mas os dados acumulados na história podem indicar a possibilidade de ocorrer, inclusive, a queda de um meteoro, a exemplo do Tcheliabinsk que explodiu na região dos Urais em 2013. Comparado com a bomba de Hiroshima, seu poder de destruição era de 500 quilotons, enquanto a bomba nuclear americana foi de apensa 13 quilotons. Ninguém detectou este meteoro até que ele apareceu nos céus russos.
De qualquer forma, a ciência tem um compromisso com a verdade e precisa comunicá-la de forma que o máximo de pessoas tenha uma informação de acordo com os fatos. É preciso saber passar a informação de maneira atraente e simples como os protagonistas do filme descobrem. Eles lançam a campanha “Just look up” (Olhe para cima!) e assim conseguem chamar a atenção da população e ter sua adesão. Por sua vez, os políticos e empresários aproveitadores de plantão resolveram contra-atacar usando a máxima “Não olhe para cima!”, até que um dia o inevitável acontece.
Um aspecto importante que Adam Mckay, o diretor do filme, ataca na forma de humor ácido é o suposto poder da ciência. Um algoritmo, baseado no registro de todas as informações sobre cada pessoa, é capaz de adivinhar até mesmo o dia e a hora da morte de cada uma. Numa cena, a presidente Janie Orlean (Merryl Streep) pergunta ao CEO da empresa, seu patrocinador político, quando morreria e ele olha para o aparelho e diz que ela seria devorada por um Bronteroc. Ela ri sem jeito e pergunta o que é, o bilionário diz que não sabe o que é e eles deixam pra lá. Às vezes é mais fácil ignorar o perigo do que enfrentá-lo.
A realidade de 2022 – que parece, a princípio, uma repetição de 2020 e 2021 – é inexorável. Estamos às voltas com o acirramento de casos da Covid-19. Os Estados Unidos já ultrapassaram a marca de mais de 1 milhão de diagnosticados com a praga; a França está com leitos esgotados de vítimas da Influenza (H3N2), a cepa ômicron do coronavírus e uma infecção dupla que recebeu apressadamente o nome de Flurona, por reunir elementos da gripe que mencionei e da ômicron. A variante Delta continua a atacar: todo cuidado é pouco.
Correndo o risco de me juntar ao coro dos joões batistas no meio de um deserto de rejeições e incompreensões, defendo a necessidade e a importância da vacina. Só ela – com a ajuda de Deus e de nossos bravos e fortes cientistas – pode impedir o morticínio dos anos anteriores. Olhem, atentos, para todos os lados. O perigo está à espreita.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.