O veneno das fake news

Aqueles que têm familiaridade com a narrativa bíblica sabem que a libertação dos escravos hebreus do império egípcio foi precedida de uma leva de pragas. Dez, para ser mais exato. Passadas muitas eras, neste biênio pandêmico, não bastasse o coronavírus, praga física e real, somos acossados não mais por outras nove, mas por milhares: as fake news. São elas as responsáveis pelo atraso no combate ao coronavírus, aos entraves da vacinação, aos erros na administração dos remédios e, são elas o atrapalho do avanço da pesquisa e da ciência.

Baseada no estudo da ONG First Draft, que se dedica a combater a desinformação, a partir dos dados postados no Facebook, em Português, no intervalo de 1º de dezembro de 2020 a 31 de janeiro de 2021, a reportagem da BBC, publicada esta semana pela versão em Português, listou algumas dessas notícias inverídicas que são mestras na disseminação do pânico, terror e desespero, entremeadas de razões políticas, econômicas, religiosas e até preconceituosas com outros países.

O estudo concluiu que muitos dos usuários acreditam que, por trás do esforço gigantesco para vacinar a população mundial, há um plano de controle, de alteração do DNA, de dominação econômica; há castigo divino e manipulação por parte de partidos políticos. E que, ao contrário do que se possa imaginar, trata-se de um público bastante heterogêneo, composto de pessoas de diferentes classes sociais, grau de instrução, sexo e preferências religiosas, o que, por si só, evidencia uma grave preocupação com a onda crescente de razões ancoradas em raízes tão frágeis.

Mas, se pararmos para analisar todo esse cenário, em que estamos todos inseridos, vamos perceber que ele não é tão inédito assim.  Como lembra a clássica “O Leopardo” (“Gattopardo”), de Tomasi di Lampedusa – depois levado às telas com Claudia Cardinale no elenco - “algo deve mudar para que tudo continue como está”. É claro que o contexto da obra era outro, mas a frase lapidar se amolda aos não tão novos métodos utilizados neste biênio em que a humanidade teve que aprender a esconder o sorriso por trás das máscaras, distanciar-se socialmente e fazer do álcool em gel um aliado.

Se voltarmos nosso olhar para um passado não muito distante, vamos ver as mesmas práticas nefastas, os mesmos interesses, as mesmas mesquinharias. “Não há nada novo debaixo do sol”, já dizia o sábio Salomão, em Eclesiastes. São diferentes as plataformas, nas quais se criam para propagar e fixar toda sorte de invencionices, bem como a velocidade de sua reprodução. Mas o princípio é milenar.

Basta pegar apenas um exemplo, ocorrido em solo brasileiro. Trata-se da chamada Revolta da Vacina, episódio assim registrado pela imprensa da época, em 1904. Um homem, contrariando interesses de toda a sorte, se posicionou com firmeza focando no bem maior da saúde pública. Era o jovem médico Oswaldo Cruz que empreendeu hercúlea cruzada pela vacina, atraindo a ira de militares, monarquistas, republicanos e radicais das forças operárias.

Naquela época, a lei amparava a vacinação compulsória contra a varíola. E, se apenas há alguns anos, vimos com espanto o retrato daquela sociedade, acossada por teorias conspiratórias de toda sorte, rejeitando o antídoto contra o remédio que poderia salvar vidas, causa-nos perplexidade ver novamente as pessoas deste século tão renitentes, tão afeitas às mentiras que se multiplicam de forma assustadora.

Outro interessante artigo foi publicado recentemente na Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, publicação do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),assinado pela pesquisadora Larissa Domingues, intitulado “Infodemia: uma ameaça à saúde pública global durante e após a pandemia de Covid-19”. Ela informa que esse novo verbete foi inaugurado pelo professor e pesquisador em saúde, Gunther Eysenbach, em artigo publicado no longíquo 2002 e se refere à disseminação em massa de notícias falsas. Afirma que Eysenbach já havia alertado, no ano passado, que estávamos entrando na era das infodemias. Representantes da Organização Mundial da Saúde, da Organização das Nações Unidas, jornalistas, pesquisadores na área da saúde, têm se reunido constantemente para debater ideias de como combater esse tão grave mal.

Recomendo a todos uma postura prudente: antes de repassar informações recebidas sem comprovação nenhuma, que se cheque a veracidade das mesmas nos sites de agências de saúde, nos portais jornalísticos sérios. Que se desconfie de notícias alarmistas.

Como um homem da ciência e também da fé – acreditando que ambas não são excludentes – sou entusiasta defensor da pesquisa e grato àqueles que dedicam horas de estudo para fazer com que ultrapassemos as tristes quadras da história da humanidade. Espero que aprendamos com os prejuízos que não só a desinformação ocasiona, mas também com as consequências devastadoras e venenosas geradas pelas fake news.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em 22/05/2021, em O Estado do MA