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O passado à espreita
Em uma clássica publicação intitulada “1968: o ano que não terminou”, o jornalista Zuenir Ventura dedicou-se a analisar as consequências daquele tempo para a realidade contemporânea. De igual modo, podemos tomar de empréstimo a expressão para o biênio que assolou o mundo – 2020/2022 – e dizer que, a despeito do abandono em parte das máscaras e álcool em gel, dos postos de vacinação vazios e do aquecido calendário de eventos, ainda nos surpreendemos com os efeitos deletérios da praga que invadiu nossa existência.
De forma empírica, ouvimos aqui e ali pessoas relatando consequências da contaminação com o vírus. Alguns se queixam de um medo difuso que não conseguem nominar; outros, por não acreditarem que haverá um amanhã sem praga, tornam-se mais reclusos e mais amedrontados.
Os pesquisadores, por sua vez, já têm identificado resultados semelhantes, só que munidos de seus métodos. Relatório europeu da saúde 2021, divulgado recentemente pela Organização Mundial de Saúde, trouxe dados preocupantes: o aumento do sedentarismo, do consumo de álcool e de drogas, perdas cognitivas, alterações bruscas de humor e distúrbios na aprendizagem. Talvez essa herança maldita seja o inimigo próximo, à espreita, a nos lembrar de que o passado ainda está vivo.
Outro importante estudo brasileiro, publicado este ano na Psychiatry Research, informa que foram as mulheres de até 45 anos acometidas pelo coronavírus - com histórico de doenças crônicas - as mais afetadas por sintomas de ansiedade. A autoria dessa constatação é do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), que realizou a pesquisa em parceria com o Hospital Especializado Octávio Mangabeira (HEOM), aplicando questionários a um público de 400 pessoas, entre homens e mulheres.
Igualmente relevante é a publicação de estudo coordenado pelo HC USP, na revista científica General Hospital Psychiatry, que identificou ansiedade generalizada e perda de memória num lapso temporal entre integrantes de um público de 425 pacientes que estiveram internados na UTI. As alterações foram relatadas num período de seis a nove meses após essa internação.
Pesquisadores mundo afora têm encontrado conclusões parecidas. A Universidade de Oxford, no Reino Unido, registrou, em publicação, o resultado de uma pesquisa feita a partir de imagens cerebrais de pacientes pós-covid e as comparou com as imagens desses mesmos pacientes em período pré-doença. Diversas alterações foram detectadas.
Como viveremos o resto de nossos dias imersos neste cenário de incertezas, com corações e mentes adoecidas? Será que estamos fadados a rolar a pedra ladeira acima como uma tarefa vã de um Sísifo moderno, vez que a mesma está fatalmente destinada a descer novamente e nos atacar?
Lembrei da poesia do mineiro Drummond de Andrade, intitulada Congresso Internacional do Medo, uma elegia que tão bem se encaixa nestes dias: “(...) Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos (...) existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas”.
Assomado pelo sentimento de solidariedade com os que sofrem com a ansiedade e depressão, quero estimular os que se encontram emocionalmente saudáveis. Senso de preservação e cuidado nos trouxeram até aqui. Mas também a ousadia de avançar rumo ao desconhecido, a despeito dos senões que se nos atravessam o caminho, como diz tão sabiamente Riobaldo: “o que a vida quer da gente é coragem”, independente do passado que permanece à espreita.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.