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Na cinza das horas de 2020

publicado: 02/01/2021 15h07, última modificação: 11/01/2021 15h56

Embora estejamos assistindo ao término dos dias de 2020 – com certo alívio, confesso – a verdade é que toda a carga dramática que nele se instalou também nos acompanha, como uma sombra sorrateira, nestes primeiros dias de 2021. Em compensação, encerramos a segunda década dos anos 2000, com um aprendizado que nos colocou alguns anos à frente do que costumeiramente era o esperado.

Se um título pudesse definir o perfil do ano que se encerra, poderíamos chamá-lo de “verdades inconvenientes”. Sim, a espécie humana, que alimenta de quando em vez a ilusão, de que está acima de tudo e de todos, neste planeta habitado por milhares de outras espécies, rende-se mais uma vez à constatação da fragilidade que nos rege. Um vírus mortal atravessou ares e oceanos, chegando às nossas ruas e vizinhanças num átimo de tempo.

A grave crise sanitária tornou as máscaras e o álcool em gel como aliados de primeira necessidade e nunca mais pudemos baixar a guarda, quando nos aproximamos de amigos e parentes, alertados e influenciados pela mídia que informa, em profusão, o número de vítimas mundo afora. Se WuHan era extremamente desconhecida para a maioria de nós, hoje sabemos, com certa familiaridade, inclusive onde se localiza, da mesma forma que compreendemos o significado de lockdown, na prática.

Essas palavras compõem o medo que espreita nossas cidades, diariamente. São alvos do inimigo invisível: o pai de um amigo, a esposa de um conhecido, o filho do vizinho. Cercados pela proximidade do risco de contágio, a ansiedade e a aflição têm sido experimentadas pela maioria de nós.  Um quadro dramático: a catapulta não poupa sequer nossos bravos profissionais da medicina, entre eles psicólogos e psiquiatras que colocaram seus dons e talentos a serviço do próximo, por mais valorizados e respeitados que fossem.

Pesquisa divulgada pelo instituto IPSOS aponta que 72% dos brasileiros entrevistados disseram ter tido um ano ruim: é um índice dez por cento maior do que o de 2019. Outra notícia assustadora veio do Reino Unido: lá foi diagnosticada uma mutação do vírus, que, segundo as autoridades de saúde britânicas, pode ser 70% mais perigoso. Infectados por esta nova variação do coronavírus foram diagnosticados no Canadá, Espanha, França, Suíça e Suécia.

Mas não quero erguer apenas um muro de lamentações. Não serei um Jó a semear dores sem consolação. Eis que reservo boas novas para compartilhar. Como Mário Quintana, repito devagar o nome do antídoto contra os males mencionados: a esperança. É ela que nos permite ver ainda, como o poeta Manuel Bandeira, em 1917, a beleza na cinza das horas.

Sim. De 2020, a ciência sai fortalecida. As pessoas de bom senso têm adotado o hábito de contradizer, com orientação científica séria, cada ataque de fake news de teoria conspiratória. Outro ponto fantástico: o genoma do vírus teve sua sequência completamente identificada, num esforço coletivo de cientistas britânicos e brasileiros, em pouquíssimo tempo.

Aprendemos a nos emocionar (ainda mais) com as reuniões informais em família e entre amigos, transmitidas pela internet. Trabalhamos, de forma coletiva, mesmo que a quilômetros de distância uns dos outros.   O senso de solidariedade, há muito adormecido, foi despertado. No lugar de vizinhos estranhos, vimos erguer-se uma gigantesca rede de fraternidade e ajuda, principalmente com foco nos idosos e nas pessoas com alguma espécie de fragilidade.

Nossos heróis de jaleco foram para o front. Para cada profissional de saúde dedicado, minha imensa gratidão. Fortes e bravos no dizer da poesia gonçalvina. Vocês merecem todo nosso respeito e consideração. Desejo mais valorização e reconhecimento, valores que estimulam a dignidade e a autoestima. 

A vida requer da gente é coragem, disse Riobaldo, nas escritas de Guimarães Rosa. Torço para chegar o dia em que a Covid-19 seja apenas lembrança do passado. Que a vacina chegue logo e que o remédio seja descoberto e entregue a tantos quantos dele precisarem.

Como ensina o poeta Carlos Drummond de Andrade, “Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”. Mesmo frágeis, somos capazes de acumular espera, para crer em tempos melhores. Vamos escrever 2021 na cinza das horas de 2020, sob o título da esperança.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em O Estado do MA, em 02/01/2021