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Muito acima do corpo
A última sessão do Programa de Verão – evento em homenagem ao confrade Ricardo Cruz –realizada pela Academia Nacional de Medicina, teve como tema Espiritualidade e Saúde Mental, com a abertura do nosso presidente Rubens Belfort Jr. e coordenação do confrade Marcello Barcinski. A sessão foi capitaneada pela teóloga Maria Clara Bingemer, comunicadora com larga atuação na área e contou com a participação especialíssima do confrade Jacob Kligerman, que dividiu conosco a riqueza da convivência com Ricardo, um ser humano diferenciado.
Na mesma tela, Paulo Blank, médico psiquiatra e especialista em cultura judaica, falou sobre a experiência pela qual a humanidade atravessa: o mesmo sentimento de medo, mesma adaptação à natureza modificada e mesmas grandes alterações da sociedade. Falou que “a modéstia da escuta oferece ao outro a primazia da fala. A origem da palavra clínica significa inclinar-se ao outro”, cujo mistério ultrapassa todas as concepções e avanços tecnológicos.
Também esteve presente ao evento o matemático e padre Paul Alexander Schweitzer S.J., especialista em topologia diferencial, topologia geométrica e topologia algébrica, discorrendo acerca das implicações da fé e da ciência para a formação do pensamento humano e ainda da relação do cosmos e a existência humana. Paul nos chamou a atenção para o cuidado com a espiritualidade em tempos tão pandêmicos, o que pode assegurar nossa sobrevivência. Naquele evento, Maria Clara nos narrou ainda sobre curas milagrosas relatadas nas escrituras sagradas, entremeando as histórias tão conhecidas com o cuidado com o corpo. Os acadêmicos Jorge Costa e Silva, Pietro Novelino e Sergio Novis também compartilharam suas experiências pessoais no campo da religiosidade e da fé, tornando aquela tarde memorável.
A espiritualidade sempre esteve próxima da medicina, não porque alguns de nós têm sua própria religião, ou pelas maravilhas da perfeição do corpo humano, que fatalmente nos levam a um tipo de alumbramento; ou porque nossos pacientes, em suas próprias experiências de cura e superação das doenças, sejam profundamente marcados por sua vivência espiritual, mas porque todos revelam haver algo que simplesmente não entendem e isso não é só ignorância, é a eterna indagação sobre o que ainda não sabemos.
As pessoas são um todo bio-psico-social, conforme a definição de saúde da OMS. Mas é cada vez mais comum encontrarmos artigos que incluem o espiritual à tríade mencionada. Um grupo de pesquisa da Brown University School of Medicine criou um método a ser usado pelos médicos, para abordar a dimensão espiritual dos pacientes. O Método foi denominado HOPE (esperança) e objetiva abordar o espiritual por meio de perguntas que seguem uma sequência e permitem aos pacientes terem um espaço para exercer este importante componente da saúde mental.
Atribui-se a Blaise Pascal a frase: “Tudo que é incompreensível, nem por isso deixa de existir”. Quase um convite à humilde postura de calarmos ou de não buscarmos, de forma arrogante, por explicações sobre as maravilhas que nos cercam e que se realizam quase sempre longe de nossas mentes cartesianas, sem que possamos apreendê-las completamente.
Defendo: o tema espiritualidade deve ser incorporado à própria formação profissional do médico. A razão é simples: os pacientes incluem sua espiritualidade no processo de adoecimento e, como muitas pesquisas realizadas pelo psiquiatra Harold Koenig e pelo psicólogo Kenneth Pargament apontam, a prática espiritual é uma forma de coping (enfrentamento) das dificuldades próprias do adoecer ou das situações de estado terminal. Pargament foi um dos criadores da Divisão 36 da Associação Americana de Psicologia, área dedicada à discussão da Psicologia da Religião e Espiritualidade.
O evento da Academia trouxe um tema que pede mais oportunidades de discussão, também pela quantidade robusta de pesquisas. Uma olhada no Pubmed mostra a inclusão do tema espiritualidade, tanto na formação, como no exercício da medicina em nosso país. Temos um excelente exemplo na Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense que, desde 2017, tem, em sua matriz curricular, a disciplina optativa de Espiritualidade.
Inspirado em Shakespeare, há sim muito mais coisas entre os céus e a terra do que supõe a nossa imprescindível medicina. Se, como dizem os quânticos, somos apenas poeiras de estrelas, um olhar para o alto é capaz de nos elevar muito acima da concretude do corpo.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 13/02/2021