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Máscaras sem baile

publicado: 19/02/2021 10h06, última modificação: 19/02/2021 10h06

O título deste artigo em outros tempos pareceria um paradoxo. Mas hoje, não. Que fevereiro sombrio: no lugar das máscaras carnavalescas que cobriam os olhos – e, às vezes, o rosto inteiro – vimo-nos às voltas com as que cobrem nariz e boca, numa inversão ocasionada por uma praga que persiste em atentar contra nossa alegria. Carnaval passou sem confete. Nenhuma serpentina foi disparada no ar. Ao contrário do que profetizou Clarice Lispector em sua crônica, neste carnaval, pela primeira vez ninguém teve o que sempre quer: ser senão o que se é. 

O carnaval é algo tão sério no Brasil que virou certeza afirmar que o ano só começa mesmo depois desse período. E todos nos acostumamos, desde a infância, a esperar, pacientemente, para que as coisas de fato pudessem acontecer, depois que a folia tivesse ido embora. Os estrangeiros estranhavam, mas para nós era algo inato. Por isso mesmo, a geração atual sentiu uma leve angústia no peito ao não encontrar as alegorias e fantasias nas passarelas das ruas.

“Quando eu não puder pisar mais na avenida[...]”. Eis o início dos versos de “Não deixe o samba morrer”, composição de Edson Conceição e Aloísio Silva, gravado pela primeira vez, em 1975, por nossa querida Alcione, canção que certamente veio à mente de milhares de foliões maranhenses, neste atípico 2021. Nossa Madre Deus já não era a mesma. Também não houve o alegre circuito carnavalesco no centro da cidade, nem as folias vividas nas praças dos bairros que, invariavelmente, terminavam em algum barzinho ou casa de amigos.

Na memória, resgato as brincadeiras do entrudo, acompanhadas dos banhos de maizena; o fofão, mítico personagem que causava medo em muitas crianças, muito ajudou as lojas de tecido a venderem chita. E a Casinha da Roça, uma representação típica dos costumes rurais bucólicos para os citadinos, normalmente integrava uma das alas das escolas de samba maranhenses, como Turma do Quinto, Favela do Samba, Flor do Samba, Mangueira, que fizeram história no Anel Viário. Saudades da alegria dos blocos tradicionais – ou de ritmo: Fuzileiros da Fuzarca, Caroçudo, Akomabu; do carnaval da segunda-feira, no Laborarte, e das alegres tribos de índios.

Lembro dos carnavais de outrora, programa para toda a família. Não havia profusão de drogas ou violência. Bailes eram ponto de encontro dos amigos nos clubes tradicionais, para o festivo encontro regado de marchinhas. E os amores do período? Ah, esses aconteciam com personagens fantasiados, sobretudo de alegria. Almoços no sábado gordo, folia de domingo a terça e alma contrita na quarta de cinzas. Retrato na moldura das recordações. Como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade, em Confidência de Itabirano: “...apenas um retrato na parede”.

A realidade cinzenta afastou de nós essa graça. Estranho constatar que, neste ano, no auge do tríduo momesco, as lojas estavam abertas, o serviço público funcionou em algumas esferas, as escolas não deram feriado, o trânsito vivenciou a rotina dos dias comuns. O reinado de momo foi interrompido e sabe-se lá quando poderá voltar.

E como o carnaval também é uma indústria, seus trabalhadores foram,  por antecipação, os mais atingidos. Penso na quantidade de músicos e vendedores ambulantes que deixaram de faturar, assim como costureiras, produtoras, motoristas de transporte alternativo, organizadores de baile. Penso nos hotéis vazios. 

Ó abram alas – maus tempos – que nós queremos passar. Queremos voltar a viver dias mais leves, com o desfile das escolas de samba, dos blocos, da folia despretensiosa e da passarela da diversão. O folião, que habita em nós, apenas dorme, enquanto a borrasca não cessa e quem sabe está sonhando que já pode pisar de novo na avenida. O fato é que, no carnaval deste ano, teve máscara, mas não houve baile.

 

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em O Estado do MA, 20/02/2021