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Literatura, humanismo e antipsiquiatria

publicado: 29/01/2021 22h00, última modificação: 29/01/2021 17h14

Dia 21 deste mês, como parte do Programa de Verão, foi realizada, na Academia Nacional de Medicina, a palestra Humanismo & Literatura: Machado de Assis de corpo e alma. O encontro virtual foi dividido entre Pedro Meira Monteiro, da Princeton University, dos Estados Unidos, que ministrou palestra sobre o tema “A convulsão do corpo: o Machado de Silviano Santiago”. A outra palestra foi ministrada por Marta de Senna, da UFRJ e da Fundação Casa de Rui Barbosa, com o tema “Sintoma, doença e delírio: dissimulações machadianas”, sob a coordenação desta última e a presidência de Marcello Barcinski. Faço questão de ressaltar: esse programa foi pensado como uma forma de homenagear o acadêmico Ricardo Lopes da Cruz, que nos deixou em 2020.

Machado era um sofredor. Se fosse pela expressão de um poeta, quem sabe Fernando Pessoa dissesse que ele chegava a fingir que era dor, a dor que deveras sentia. Lutou com a epilepsia que, nos anos finais de sua vida até sua morte, em 1908, agudizou-se em crises mais frequentes, a ponto de, como nos relatou Monteiro, acontecer publicamente, numa ocasião em que aguardava o embaixador francês. Esta crise foi registrada em fotografia, para ainda maior sofrimento de Machado, que tentou manter sua doença em privacidade.

Ele nunca falava da epilepsia pelo nome: chamava-a de “ausência”, como se referiu em carta pessoal a seu amigo Mário de Alencar. De fato, uma das manifestações da epilepsia tem a forma de ausência de corpo e alma. Não todos, entre os que se encantam com a profundidade das reflexões que Machado foi capaz de criar em sua obra, sabem que ele mergulhou em “ausências” mentais que, em nenhum momento, o excluíram. Muito pelo contrário, a profundidade em que submergiu nessas ausências epilépticas deve ter sido favorável à sua preciosa garimpagem humanista. 

Em seus últimos anos, com o agravamento da doença, Monteiro destaca que Machado ficou quase que obsessivo com o quadro do pintor renascentista Rafael Sanzio (1520), chamado Transfiguração, que retrata a passagem do Evangelho de Mateus (17: 1-9). O quadro opõe a Transfiguração de Jesus, no alto do monte, onde recebe o testemunho de Deus, sobre ser Ele seu filho, a um jovem epiléptico e endemoninhado que estava na base do monte, contra o qual os discípulos, enquanto esperavam por Jesus, tiveram que lutar. No quadro, se vê o jovem apoiado pelo pai, com os olhos vazios, o corpo contorcido e ausente. Machado se vê projetado no jovem e na sua própria via crucis de sofrimento para a qual não vê cura.

Outros palestrantes, como Hélio Guimarães e Marco Antonio Alves Brasil, exploraram os aspectos psicológicos da obra machadiana. Nessas palestras foi destacada a impressionante sensibilidade de Machado para desvendar os segredos da alma humana. Brasil afirma que Machado “tornou-se o primeiro antipsiquiatra do mundo e legitimou a loucura”. Como antipsiquiatra, ele provavelmente apontou que Machado antecipou em quase 60 anos o movimento liderado por Franco Basaglia, que questionou a forma como a psiquiatria tratava seus pacientes, causando mais mal e preconceito do que a legitimização da doença e sua humanização. Por causa disso, Basaglia cunhou o termo “duplo da doença mental” que se materializava na doença e na institucionalização. Então era preciso promover uma ação contrária à psiquiatria que, internamente, não só promovia o ser humano em sua condição de doente, mas também o estigmatizava.

Interessante é perceber que aquilo que tanto atormentou um dos maiores ícones de nossa literatura, também apurou-lhe os sentidos e a escritura. Aproximou-o das vicissitudes que nos irmanam, a ponto de celebrá-las como um profundo desvelador de almas humanas. A doença não foi de todo ruim para o escritor.  Machado padeceu, mas sua mente brilhante muito tirou proveito dessa enfermidade, a ponto de antecipar-se de mais de meio século ao movimento questionador da forma como a psiquiatria gerava a exclusão dos que padeciam de doenças mentais. E esse viés está brilhantemente abordado, até com certo humor, em uma de suas obras-primas, O Alienista, uma sátira contra a psiquiatria e a exceção.

 

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em O Estado do MA, em 30/01/2021