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Lágrimas nas páginas da cultura brasileira
Semana trágica nas páginas culturais brasileiras: perdemos, ao mesmo tempo, Nelson Freire, o mago das teclas do piano e o artista indígena Jaider Esbell, referências importantes para a música e para as artes em nosso país.
Freire foi vítima das consequências de uma queda dentro de sua casa e era reputado pela crítica especializada como um dos maiores pianistas, séculos XX/XXI. Mineiro, amante de sua terra e de seu povo, teve o talento desperto aos três anos de idade. Aos 12, já estava na Áustria para estudar piano.
Sua juventude confundiu-se com sua arte para a alegria de sua nação originária. Se chamo originária foi porque Nelson era transeunte de vários mundos. Vencedor de diversos concursos ao redor do planeta, teve o privilégio de ser inscrito na relação Great Pianists of the 20th Century – único brasileiro até hoje a integrar essa coletânea mundial que reúne uma centena de volumes com trabalhos de pianistas. Em 2012, um feito digno de registro: ganhou o Grammy latino.
Entre os amigos, Nelson ganhou um epíteto de “reverendo”. Um pouco da alma desse gênio musical foi revelado no documentário “Nelson Freire” (2003), dirigido por João Moreira Salles. Introspectivo e criativo: um binômio revelado na rotina do dia a dia de ensaios e apresentações. Recomendo.
Esbell, por sua vez, nos deixou no auge da idade: 41 anos apenas. Era um dos destaques da 34ª Bienal de São Paulo e usou seu talento como meio/mensagem para a causa de seu povo Macuxi, que vive na reserva indígena Raposa Terra do Sol, município da Normandia, em Roraima. Era muito mais que um artista: era escritor, curador, ativista, promotor cultural, pensante.
Em suas diversas entrevistas, muito mais que chamar a atenção para seu trabalho, ele fazia questão de lembrar a causa que o movia. Inquieto quanto ao que chamou de “processo sistemático de apagamento da memória dos povos originários”, usou seu talento como manifesto. Sua própria vida foi estratégia de resistência. Qualquer outra tentativa de defini-lo pode ocasionar reducionismo. Seus escritos, seus feitos, suas falas (re)soarão em outras mentes e corações.
Descrever, ainda que de forma breve e resumida, um pouco da memória e do legado de cada um desses artistas é um ato difícil. Como sintetizar uma vida permeada de dons e realizações? Pensamentos que não vieram à existência? Sentimentos que nunca foram expressos de forma prática? Se não é possível fazê-lo, sem correr o risco de apequenar o legado, uma saída é lhes exaltar o exemplo como fonte de inspiração para esta e as futuras gerações.
A cultura – em seu diverso e amplo espectro de expressões – é essa herança disponível que nos distingue como humanidade e não nos faz perder a essência do que nos torna diferentes dos outros seres que habitam este planeta, com os quais devemos conviver com respeito. Que nos individualiza como pertencentes a um povo, a uma língua, a um modo de ser e de existir.
De Freire, a revista Istoé chegou a dizer que ele é o representante do Brasil que dá certo. De Esbell, o jornal espanhol El País disse se tratar de um artista indígena que segurava o céu. Se a existência terrena de ambos cessou, seus predicados permanecem.
Acredito que a vida breve dos artistas e a partida inesperada são, ao mesmo tempo, notas de luto e portas para a reflexão sobrea valorização em vida de tantos outros quixotes que se levantam – não mais contra moinhos de vento, mas contra o descaso e o abandono desse direito tão fundamental à existência humana que é a cultura. Sigamos com a valorização da memória de outros freires e esbéis e com o incentivo de outros grandes expoentes que ainda resistem.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.