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Já viu esse filme?

publicado: 07/03/2022 15h12, última modificação: 16/03/2022 11h16
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Os olhos do mundo estão voltados nesses últimos dias para aquele ponto da Europa onde choros, perdas e uma sucessão de eventos catastróficos acontecemporque há guerra. Rússia e Ucrânia já não são tão distantes assim de nós. É como se pessoalmente também estivéssemos sendo atacados. Somos todos pertencentes, globalmente, à mesma aldeia, cuja realidade, quando é trazida à tona e analisada pela ciência, já fora antecipada pela visão intuitiva e estética de um gênero que atua como voz profética: a ficção científica.

Refiro-me, de início, a Philip Dick, um escritor que previu parafernálias de vigilância total, de acesso aos dados pessoais de todos e de um mundo onde as máquinas dominam. Dick é, possivelmente, o escritor americano de ficção científica mais prolífico depois do francês Júlio Verne (Vinte mil léguas submarinase do inglês H G Wells (Guerra dos Mundos). Esses últimos, autores do século XIX e início do XX. O que eles têm em comum é uma espécie de dom para a vidência.

Grande parte dos romances de Philip Dick, como BladeRunner, filmado por Ridley Scott, antecipam, de forma muito próxima, realidades que estão em nosso dia a dia. H G Wells, em seu romance de 1914, The World Set Free, descreve algo muito parecido com a bomba atômica que foi detonada sobre o Japão, pela primeira vez com objetivo militar. 

Chega a ser perturbador ler alguns desses romances. Quem não lembra de 1984 de George Orwell e o controle avassalador das vidas das pessoas pelo Grande Irmão quesequer se sabia se ele existia de fato? O experimento está debaixo de nossos narizes no ocidente. Quase tudo sobre nós está nas mãos dos grandes conglomerados na internet. E a China caminha a passos largos para o gigantesco experimento social de controle, por meio da leitura dos rostos das pessoas e seu crédito social. 

A série “O homem do castelo alto”, disponível na Prime, plataforma de streaming da Amazon, é outra obra interessantíssima adaptada de um dos romances de Dick e nos apresenta uma perspectiva diferente de vencidos e vencedores, ao colocar Japão e Alemanha como grandespaíses heróis do final da segunda guerra mundial. 

De volta à realidade, diga-se que a pandemia ajudou os chineses a justificarem o controle de estado de tal maneiraque não há igual em nenhum lugar da Terra. Mas eles estão fazendo escola. Mais uma vez recorro à ficção: em Total Recall, outra obra clássica de Dick, as pessoas são identificadas pelo rosto. Uma cena clássica: o herói tenta entrar em Marte disfarçado por um aparato que o transforma em outra pessoa.

A Guerra na Ucrânia, à parte dos bombardeios medievais que as cidades ucranianas estão sofrendo, iniciou-se pelo ataque às redes do país que controlam energia, saúde, comunicação e administração pública, pontos nevrálgicospara conquistar terreno. Nesta primeira grande guerra de um mundo pandêmico, ainda temos que nos deparar com a dificuldade de fazer escolhas acerca de quais fontes de informação escolheremos, para nos inteirar do cotidiano das batalhas travadas. 

Para mergulhar um pouco mais no conflito, mesmo longe de entender as razõesinteressante é a abordagem do filme Chernobyl, que estreou na HBO em 2019 e nos revelou como a burocracia de ambos os países, Rússia e Ucrânia, tentou esconder uma das maiores catástrofes ambientais que até hoje faz suas vítimas. Já em Ponte dos Espiões, de 2015, o ator americano Tom Hanks encarna um advogado que tem a delicada missão de evitar que países entrem em conflito quando da troca de prisioneiros. O filme chama a atenção por revelar um pouco da estratégia política russa. 

Há dois anos, foi publicado o livro “A Nova Guerra Fria e o Prisma de um Desastre: Ucrânia e o voo MH17”, assinado por Kees van der Pijlo qual traça um cenário intricado de política e economia entre Ucrânia e Rússia, a partir da queda do Boeing 777 da Malaysia Airlines, por coincidência ou não, precisamente em julho de 2014,quando sobrevoava Donbass, uma região da Ucrânia tida por separatista, a apenas 40 quilômetros da fronteira com a Rússia.

Todas as sugestões são caminhos que nos permitem ao menos tentar entendeo que se passa naquela região.Enquanto a ciência é um instrumento da responsabilidade humana a ser usado para o bem ou para o mal, os autores de ficção científica anteveem um futuro, enquanto farejam o transcorrer da história com seus sinais e indícios para uma realidade não estabelecida.

Nada é completamente surpreendente. Muitas vezes temos tempo para entender o que parece nos pegar de surpresa, antes de fazermos nossas escolhas. A ciência traz de tal forma à tona o que está oculto que inspira a previsibilidadeda ficção sobre o que ainda não é de fato. Algo como um espera-acontecer ou um pague-pra-ver da ficção apenas transitória, que insiste em perguntar no presente: já viuesse filme?

Talvez não tenhamos ainda aprendido - como humanidade - a lição que pode ser extraída não apenas da história mas também do relato daqueles que sobreviveram às duas terríveis guerras que assolaram o planeta no século XX.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

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