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Grandes feitos em pequenos fatos
Esta semana, a humanidade comemorou o centenário de um grande feito: cem anos da primeira aplicação da vacina BCG (Bacillus de Calmette Guérin), que ocorreu em 21 de junho de 1921. Um médico - que sabia da pesquisa realizada pelos cientistas Albert Calmette e Camille Guérin, que desde 1905 trabalhavam na vacina – solicitou sua aplicação em um bebê, cuja mãe, tendo morrido de tuberculose, passara a viver sob os cuidados da avó, também infectada com o bacilo Mycobacterium tuberculosis, descoberto por Robert Koch, em 1882.
A vacina foi aplicada no bebê, por via oral, em três doses de 2mg. Após seis meses, não havia nenhuma infecção. Logo depois, outras 300 crianças foram vacinadas com resultados positivos. Em 1924, Calmette imunizou cerca de 664 bebês com dosagem maior de 30mg, igualmente dividida em três doses. Os resultados animadores deram a segurança para a produção em massa do imunizante pelo Instituto Pasteur. Nos quatro anos seguintes, 114 mil crianças foram imunizadas sem efeitos colaterais graves.
Em 1926, cerca de 34 países haviam recebido a cultura do bacilo atenuado para a aplicação na população. Um dado inicial da Academia Real de Medicina, sediado no Rio de Janeiro, aponta que, em 1835, quase 15% das mortes catalogadas tinham a tuberculose como causa. Em 1900, o número de infectados, no Brasil, era preocupante, o que motivou médicos e outros membros da sociedade a fundarem a Liga Brasileira de Combate à Tuberculose, hoje Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), cujo objetivo era fazer campanhas de educação em saúde e prover tratamento com os meios que existiam à época. Paiva foi um magistrado brasileiro, presidente da Liga que trabalhou para a produção da vacina, no Brasil.
Em 1925, uma amostra da cultura para a produção da vacina chegou ao país pelas mãos do médico uruguaio Julio Elvio Moreau. A cultura foi repassada para o médico Arlindo de Assis que a produziu no Instituto Vital Brazil, até 1930. Por pedido de Paiva, a partir dessa data, a vacina passou a ser produzida pela Liga Brasileira de Combate à Tuberculose. Hoje, a FAP produz 5% de toda a BCG do mundo.
Uma história tão rica mostra o poder de pessoas determinadas e dispostas a trabalharem em favor do bem da sociedade. Em um tempo em que movimentos negam o valor das vacinas ou sua eficácia em vários lugares do mundo, é fundamental relembrar sua importância, responsáveis que são, sem exagero, pela qualidade de vida e de saúde, visto que, quase todas elas, com raras exceções, já ofereceram a proteção necessária, erradicando algumas doenças, como é o caso da vacina contra a varíola, ou mesmo considerando, por exemplo, a contra a poliomielite, muito perto da erradicação.
Abstraindo-se as informações históricas e fazendo-se os devidos ajustes em relação ao avanço da tecnologia e da pesquisa médica, voltamos ao mesmo cenário onde as vacinas contra a Covid-19 têm cumprido o bendito papel de imunizar vidas e possibilitar o resgate de um cotidiano com menos doentes e mortos, a despeito das resistências de toda sorte e das fake news que se propagam como rastilho de pólvora, prestando um desserviço a vários países.
Acredito que, no futuro, aqueles que se debruçarem sobre esses dias pandêmicos hão de identificar os verdadeiros heróis, separando-os dos disseminadores de terror e desespero. Enquanto isso, nossa gratidão, já no presente, a nossos guerreiros de jaleco, anônimos apóstolos do bem, que diariamente lutam para devolver às famílias aqueles que infelizmente foram contaminados. Gratidão à multidão de trabalhadores que contribuem, de todas as formas, para que a vacinação não pare. E gratidão também a todos os que entendem a importância da imunização e, assim, e acima de seus limites, o fazem colaborando para que um ambiente mais saudável se estabeleça no Planeta Terra e para todos.
Muitas tarefas, muitas funções, mesmo as que alguns possam considerar menores, são grandiosas em seus efeitos. A aplicação de uma vacina, o planejamento e a execução das condições, para que tal aconteça, pode até parecer um pequeno fato na rotina dos dias, mas o seu valor - que reverbera sem fim - torna-o, para a história e a ciência, um grande feito, como se sem precedentes, hoje, num mundo marcado pelo cartesianismo.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 25/09/2021