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Contra a pobreza do tempo em nós
Em artigo recente, o jornal espanhol El País discutiu a questão do tempo. Ali foi mencionado um estudo que apontava uma alteração da passagem do tempo, em nossa percepção, com a experiência da pandemia, forçando-nos a rever as dimensões tão claramente sólidas da vivência do passado, presente e futuro.
Creio que a explicação para este intrigante fenômeno apontado pela pesquisa se deve ao que tem sido nossa vida nos últimos cem anos, em que pesem os fatos históricos, como por exemplo, asduas grandes guerras que alteraram a face de continentes inteiros e o balanço de poder entre as nações.
Mas guerras, para citar eventos históricos catastróficos, estão relativamente sob o controle humano. As razões por que uma guerra começa – sem entrar no mérito de ser ou não ser justa, ou dequem tem ou não tem razão – são conhecidas, e o fim delas pode ser alcançado de alguma maneira mais ou menos previsível.
Neste século em que vivemos, o balanço geral é, sem dúvida, positivo. A ciência fez descobertas inimagináveis, e a qualidade de vida das populações, ainda que se considerem países muito pobres, foi muito melhor do que antes. Entre as diversas áreas prático-científicas, a medicina é, possivelmente, a que mais contribuiu para uma vida melhor. A agricultura superou inúmeros obstáculos e continuamos alimentando o mundo. Mas a questãotambém não é se conseguimos alimentar a todos,porque este artigo não trata de desigualdades. Trata da nova doença que se alastrou como pandemia nas dimensões que ainda estamos vivendo e enfrentando, a qual nos trouxe desafios extraordinários.
Ainda que os pesquisadores previssem que tal coisa aconteceria em algum momento, estávamos completamente desarmados. Assim, entendo que este sentimento de desamparo e impotência tenha contribuído para nossa mudança de percepção do tempo, sentindo sua passagem de forma mais acelerada. O artigo que mencionei no início alega que esse sentimento acontece porque, conforme afirma o físico Carlo Rovelli, “o passado é a ordem e o presente é a desordem absoluta.” Para ele, há a esperança de que, devido à nossa constante adaptação, achemos uma forma equilibrada de lidar com o futuro desaparecido.
Entretanto, no momento, a ansiedade faz seu papel, empurrando-nos por tentativas de prever e controlar o futuro. Onde não há futuro, afirma o artigo, não existe a esperança. Ora, somos seres de esperança.Mesmo em condições de relativa estabilidade, criamos boas expectativas. Sonhamos. Planejamos realizar coisas boas para nós e para os nossos.
O mesmo artigo nos lembra que precisamos entender os tipos de tempo que existem. Ainda que sejamos marcados pelo tempo físico – coisa sobre a qual os especialistas não chegaram até hoje a um acordo, apesar do grande sucesso da Teoria da Relatividade de Einstein – nossa mente tem seu próprio tempo, que é o tempo psicológico, subjetivo por natureza.
Esta delicada relação de equilíbrio entre o cronos e nossas vivências perceptivas/interpretativas nos levam a criar realidades tão verdadeiras quanto aquelas que são palpáveis. Alguém já disse que o cérebro é uma máquina do tempo. É uma boa definição, porque faz correlações e tenta dar sentido a tudo o tempo todo. O que é necessário fazer diante do fenômeno desencadeado pela pandemia? Talvez buscar os recursos que nos tornaram tão resilientes e, afinal, nos trouxeram até aqui. Resgatar a capacidade de ter esperança. Imaginar e planejar coisas boas e úteis. Pessoas ocupadas com planos do bem costumam ser mais hábeis em enfrentar os muitos males do mundo.
Entrevistados na mesma matéria se referiram a um fenômeno novo, chamado pobreza de tempo. Numa era de instantaneidade, do aqui e agora, da multitarefa, do onlife, no dizer de Floridi, talvez estejamos mesmo mais empobrecidos. Mas, se olharmos em outra perspectiva, certamente ressignificaremos essa nova circunstância. Basta lembrar que o tempo é uma das matérias favoritas da literatura, cuja leitura deve continuar alimentando a possibilidade de recriar o tesouro da riqueza do tempo em nós.
Se mais ou menos acelerado, o importante érepudiar a pobreza do tempo e saber como viver suas infinitas noções, para resgatar legados e projetar futuros que tornam este presente muito mais leve, ora no espaço da história das superações, ora na dimensão da espera da realização dos sonhos.
AChina, origem da pandemia que assola o mundo há pouco mais de dois anos, adotou, desde o início do alastramento do vírus, a política de zero Covid-19 no país. As medidas incluíram desde quarentena severa em regiões cuja população equivaleriam a de países inteiros, até a suspensão de voos de países como os EUA, medida que tem gerado alguns percalços na relação comercial entre essas nações.
A mais recente medida, seguindo a política de “tolerância zero” contra a pandemia, foi a descoberta de um surto na populosa Hong Kong, em que um funcionário de um petshop testou positivo, incluindo onze hamsters daquele estabelecimento comercial. A decisão das autoridades sanitárias, além de recomendações aos donos destes animais, foi o imediato sacrifício de cerca de dois mil destes animais, ainda que não se tenha comprovado que eles sejam capazes de transmitir o vírus para humanos ou que todos eles estivessem contaminados.
Outras medidas acompanharam aquela dura decisão: a proibição da importação de animais de estimação - por exemplo, roedores - e da exposição pública daqueles cujos donos tinham o hábito de fazê-lo. A medida não explicava se animais que fossem levados para um passeio seriam confiscados ou mortos. Coelhos e Chinchilhas ainda não foram identificados com o vírus.
Triste cenário. A pandemia trouxe novas realidades que nos desafiaram a aprender formas de lidar com algo tão ameaçador às nossas vidas. Por isso, logo foram empreendidas medidas extremas de cuidado e proteção, como se não soubéssemos com que intensidade precisariam usá-las.
Diante de tal situação inusitada, pessoas abandonaram seus animais de estimação e outras tantas se voluntariaram para adotar aqueles abandonados ou destinados ao abate, visto que a maioria não fora testada. As autoridades sanitárias se mantiveram irredutíveis.
Este evento foi notícia no mundo inteiro, talvez porque venha crescendo, de forma perceptível, a sensibilidade em relação aos animais. Movimentos sociais diversos nos últimos anos têm defendido a proteção dos animais, em parte por causa das evidências preocupantes na velocidade do desaparecimento de animais e plantas em todo o mundo e em parte inspirada pela Bioética, ciência que expressa princípios norteadores de nossa relação uns com os outros e com a natureza.
É interessante notar que patos e frangos, conhecidos reservatórios de gripes diversas e efetivamente transmissores para humanos, foram, em vários momentos, sacrificados aos milhões, sem que tenha havido muita reação. Eles são animais incorporados à nossa cadeia alimentar e, num mundo cada vez mais urbano, muita gente jamais viu um frango vivo na vida.
A questão dos roedores na China levanta a discussão do grau das medidas que possam causar mais dano que benefício, principalmente com relação à forma de como os animais seriam mortos. Em pesquisa, há rígidos protocolos que, por exemplo, ratos usados em laboratório tenham uma morte “digna” – entenda-se, sem sofrimento. E vemos cada vez mais o aumento de pessoas defendendo o fim total de animais para testes laboratoriais. Afinal, muitas pesquisas apontam que até mesmo alguns vermes – discussões à parte em relação às interpretações – são sencientes. Quer dizer, sentem dor e emoções.
Acredito que, com o avanço computacional da inteligência artificial e da computação quântica que elevará nossa capacidade de processamento e níveis jamais imaginados, poderemos criar novas moléculas para remédios ou qualquer outra necessidade, como a estética, apenas simulando as diversas testagens virtualmente. Por enquanto, ainda não é possível dar respostas a essas questões, mas já podemos nos valer da boa fundamentação que a Bioética nos fornece.
Por fim, lamento que os inocentes animais tenham virado as bruxas modernas nas fogueiras da inquisição daqueles que teimam em não enxergar o óbvio: o ser humano que destrói, prejudica e desrespeita o direito sagrado de milhares de outras espécies que não só fazem parte da Terra, mas também participam de sua cadeia vital. Acredito que a Bioética está diante de um momento fértil para discutir e traçar caminhos de um tratamento digno aos animais, o qual impeça o sacrifício do direito de todas as espécies que têm este planeta como casa. Parece que a visão global da vida já exige a globalização da igualdade no planeta.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.