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Azulejos ao vento

publicado: 04/09/2021 08h00, última modificação: 03/09/2021 10h07
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Moderna à moda antiga - eis um epíteto para nossa São Luís, que no dia 8 chega a 409 anos. De um lado, escadarias amareladas, muretas e postes que teimam em ser o passado; rico patrimônio feito de azulejos e mirantes, casarões que guardam histórias seculares, entre os quais um que não esconde “a íngreme escada onde o desejo subia com seus disfarces”, cenário decantado na constatação poética do piauiense H. Dobal, em sua Cidade Substituída. Em Mirantes II, o mesmo poeta se admira: “(...) Sobre o telhado, o mirante acompanha o tempo que não dorme (...) O mirante não guarda/ os cristais de crepúsculo/nem a dura certeza/ de que uma cidade nos seus azulejos só é perene como a brisa e a nuvem”.

E as igrejas centenárias sopram segredos, rezas silenciosas e corações esperançosos. A propósito, o maranhense Inácio Xavier de Carvalho, em Frutos Selvagens (1894), descreve a dor da toada do sino da igreja de São Pantaleão: “Em minha terra, o sino mais sentido, o mais triste de todo o Maranhão, é o grande sino, há muito erguido/ da velha e secular São Pantaleão...”. Nas ruas do centro, há resquícios aqui e ali de opulência nas “lentas ladeiras que sobem angústias”, entremeadas de praças que ouviram sussurros de juras de amor, encontros furtivos e a alegria de crianças num tempo em que pressa era uma palavra desconhecida.

Atravessamos a ponte: atravessamos o tempo e continuamos sendo nós feitos de ontem e de hoje. Há prédios modernos, um comércio pujante que pouco a pouco se distancia da velha Praia Grande que um dia foi cenário de ricos comerciantes de secos e molhados; escolas, faculdades, hospitais, ruas novas que em nada lembram a arquitetura que estampa postais e cativa a mente do potencial turista. E o asfalto denuncia: estamos no futuro que olha para os anos idos apenas nas gravuras guardadas e estamos sim no presente que foi nosso futuro tão sonhado, a olharmos para o lugar em que nos reconhecíamos.

Hoje, se saudamos as pedras de cantaria alisadas pelo arrastar das vidas contadas em quatro séculos: pedras testemunhas em que dormem segredos que sobre elas calaram; se amamos admirar o pôr do sol sobre telhados suaves de casarões silenciosos e adivinhar as vozes das vidas que neles viveram; se ainda sentimos, como dizia Helen Keller, as camadas de cheiros que ficaram nelas entranhadas como personagens vivos que contam suas histórias dessa forma, também sabemos que a verdadeira identidade de São Luís é a mistura de sua verticalização e de seus traços de vidro e aço.

A identidade da cidade vai alterando a nossa, é verdade, mas cada geração deixa seu testemunho, e nós que hoje existimos e a habitamos, celebramos a nós mesmos que lhe damos vida, mas sabemos também que o que nos define é a história daqueles que vieram antes de nós e dos que conosco vivem entre nós. Tudo é história, mesmo que preferíssemos contar diferente. 

Há os que estão nas ruas e calçadas estreitas do centro velho, nos mirantes que nos levam para outro mundo, como o guarda-roupa das Crônicas de Nárnia. Há nossos antepassados que caminham entre nós nos odores como no Mercado das Tulhas. Ali é uma biblioteca de cheiros antigos que nos transportam e quase nos fazem sentir que voltamos no tempo por segundos. Mas há também os cheiros de hoje que o vento se encarrega de misturar, porque somos feitos dos dois lados: ponte e tempo; ilha e istmo.

No mais, somos a beleza que o homem não fez.  Somos dádiva: ilha cercada de manguezais onde, ainda hoje, garças, mergulhões e guarás se abrigam nas noites. Somos os que viram a esquina dos rios, pisam as areias brancas e veem o mar do alto de suas janelas, cuja beleza não cessa, cuja poesia – de ontem e de hoje – que eu quero aprender, não dorme, porque há pouco passou por aqui um azulejo ao vento, lá para os lados onde ficam os prédios.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em O Estado do MA, em 04/09/2021

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