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As réplicas humanas em rede
O que a bomba atômica e as alterações genéticas (H. G Wells), o submarino (Julio Verne), os robôs (Isaac Asimov), o mundo mediado pela virtualidade (Pierre Lévy) têm em comum? Mentes prodigiosas muito além de seu tempo.
O último desta pequena lista, Pierre Lévy, não se encaixa com os demais, pois não é um escritor de ficção científica. Escreve como quem vê a realidade adiante como realidade mesmo. Ainda na quase longínqua década de 1990, escreveu muito sobre este mundo, agora mais virtualizado do que nunca, graças à pandemia.
Uma entrevista deste sociólogo/filósofo, publicada recentemente na edição brasileira do jornal espanhol El País, é fundamental para se entender parte deste mundo e esta palavra é mais que uma ideia, é um fato inconteste. Tornamo-nos navegadores da rede. Mares bravios e grandemente desconhecidos.
As obras de Lévy, a despeito de décadas, ainda nos ofertam insights profundos e necessários para que mantenhamos o que é fundamental em nossa humana característica principal: “O que distingue o ser humano é a linguagem... E penso que isso condiciona todo o resto, toda a evolução econômica, política e cultural”.
A questão se refere ao modo como usamos a linguagem. De que maneira ela nos serve? Lévy, novamente, foi um dos primeiros a perceber o potencial do uso da linguagem de forma devastadora das relações em todos os sentidos, ao ponto de se tornar fake news, pós verdade e outras tantas formas de desconstrução da realidade.
Uma pesquisa recente prevê situações em que as pessoas não terão mais parâmetros para distinguir o falso do verdadeiro. Segundo o MIT, as notícias falsas se espalham 70% mais rápido e alcançam muito mais gente na rede. Mas Lévy destaca, em sua pesquisa, algo basilar: a natureza humana não mudou. Em sua entrevista ele diz que “a partir do momento em que há linguagem, há mentira e há manipulação.” A rede dá a esta natureza possibilidades infinitas.
Sim, a rede pode ser um instrumento terrível, mas Lévy sugere que nosso desafio é saber utilizá-la de forma produtiva e útil. A educação formal tem nela seu principal aliado. A situação que a pandemia criou é a prova inconteste. Criou um novo paradigma com o qual devemos trabalhar de agora em diante. Mas há algo a mais sobre o que Lévy adverte tratar-se de uma realidade completamente verdadeira: a rede é fruto de um mundo democrático. Sua natureza intrínseca é ser aberta, mas esse status está mudando rápido.
As megaempresas, que nasceram nesse ecossistema virtual, têm hoje mais poder que alguns estados e não se deixam guiar por princípios coletivos, mas por seus interesses. Elas têm capacidades de identificar qualquer indivíduo e de eleger ao seu bel prazer o que é importante e o que é ameaçador. De fato, essas empresas têm mais informações sobre as pessoas que qualquer estado organizado no mundo.
De tudo o que Lévy diz em sua lúcida entrevista, talvez seja este o alerta mais grave de suas palavras acerca das gigantescas estruturas por trás desse emaranhado: as empresas “já regulam a opinião pública, porque são elas que dominam as redes sociais, onde as pessoas se expressam. Então, se decidem censurar algo, censuram e ponto; e, se decidem valorizar algo acima do resto, também. Têm um poder ilimitado”.
Diante disso, resta continuar perguntando sobre o que restará de nós, seres reais, no mundo virtual; sobre como sobreviveremos ao poder da linguagem que nos recria virtualmente; sobre se continuaremos a ser o que somos ou se nos tornaremos o que a rede inventa de nós; sobre como resistiremos à enxurrada de fatos que a rede tece à revelia da verdade. Se não pensarmos sobre essa questão, corremos o risco de nos perdermos como réplicas; e de jamais nos reencontrarmos como exemplares originais da humanidade, senão como peças falsificadas do acervo humano.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 10/07/2021