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Antes que a conexão deixe de cair
Um artigo interessante, publicado pelo jornal El País, apresenta um elemento significativo para o fenômeno chamado pós-covid-19: a gestão do tempo. Uma discussão importante, sobre diminuir a jornada de trabalho para quatro dias, levou a uma experiência que está sendo testada na Islândia, Nova Zelândia, Japão e Espanha, para melhorar a qualidade de vida. Entretanto, as experiências iniciais acusam um aumento na produtividade e nos altos níveis de insatisfação dos empregados.
Existem ainda outras questões a serem contabilizadas na proposta da diminuição das horas semanais de trabalho, como por exemplo, a que quer saber se ter mais tempo será usado realmente para investir na qualidade de vida ou para correr ainda mais com um número absurdo de atividades para fazer, já que as demandas extras se multiplicam na exata proporção do tempo disponível.
No Brasil, a ideia ainda é um embrião com poucas experiências diante de um culto à produtividade, o que exige investimento contínuo em competências e, com isso, mais tempo dedicado. Quem não lembra de quando se tinha de pagar qualquer conta, por simples que fosse, e ficávamos obrigados a ir ao banco e, nas longas filas, contávamos os minutos, na expectativa do retorno a quem amávamos? Afinal, parece-nos, mesmo que não nos desloquemos para fazermos o que outrora só podia ser feito de forma presencial, a situação tem a ver com a lógica de ganharmos muito mais tempo. As salas de espera de consultórios médicos eram praticamente espaços de terapia. Pacientemente, as pessoas esperavam, liam revistas e conversavam.
Parece falsa a sensação de que dispomos de mais tempo. Parece canto de sereia a ideia de produtividade relacionada à sugestão de que, com a tecnologia, podemos, com menos tempo, fazer mais coisas. A reportagem do periódico espanhol alerta para a perda da fronteira entre aquilo que é trabalho, a vida doméstica e o momento que se teria para cuidar de si mesmo, pois é isso que as diversas propostas sugerem: um tipo de encantamento que, sim, tem pontos positivos.
Além de tudo, há uma invasão furtiva e insidiosa de slogans e propostas que acenam com facilidades de todo jeito, em especial com formação permanente “na palma da mão”. Um trabalhador da ativa, neste 2021, que seja minimamente preocupado em manter-se empregado, tem enorme dificuldade de ignorar a última atualização profissional. Mas, caso perceba sua dificuldade em gerir tanta informação e exigências, não há problema: planners automatizados e incrivelmente sofisticados estão disponíveis para não perder um único compromisso. É só baixar em seu smartphone.
Contra tudo isso, correntes vendem o minimalismo como a saída ou algumas horas por algum valor, assistindo a aulas de Marie Kondo com seu mantra repetido mundo afora “organize seu espaço, mude sua vida”, para aprender a se sair bem nesta gigantesca babel, ganhando tempo. Em paralelo, CEO’s compartilham uma postura estoica mostrando estilos de vida que misturam, na mesma atitude, o minimalismo a uma atitude zen. Vendem seus fascinantes e libertadores apps que, além de resolverem quase qualquer coisa, ainda dão tempo extra e aumentam a produtividade, gerando ganho na qualidade de vida.
Antes que alguém me acuse de saudosista, confesso que não o sou: vivo cada momento aproveitando o que ele traz de bom em cada inovação. Mas continuo com a sensação de que tínhamos mais tempo, quando, de forma bem dividida, podíamos escalar atividades por horários, geografia completamente diluída nestes pandêmicos tempos.
Para Emily Dickson, “se o tempo fosse remédio/Nenhum mal existiria”. O modo como estamos gerindo nosso tempo denuncia exatamente como vivemos; e o modo de viver, um conceito específico de vida. Em um mundo dominado pelos algoritmos, onde pouca ou quase nenhuma coisa é escolhida de forma voluntária, talvez possamos, ainda que por breves instantes, assumir a rédea de nosso relógio e lembrar que haverá um momento em que desplugar será coisa do passado.
Enquanto isso, é preciso tentar, para não deixarmos a vida ser adiada como no verso de Vinícius, que ainda nos surpreende, porque a conexão ainda nos faz o favor de cair. “Meu tempo é quando”. Por enquanto, por alguns minutos, o tempo ainda pode ser meu.
Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.
Publicado em O Estado do MA, em 18/09/2021