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A resistência do sentimento junino

publicado: 03/07/2021 08h00, última modificação: 02/07/2021 14h01
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Junho encerrou. As fogueiras foram poucas e a maioria delas só se viu por meio das telas das plataformas dos smartphones, tablets e notebooks. Os sotaques da baixada, matraca, zabumba, costa-de-mão e orquestra, cujo ressoar somos acostumados a ouvir em diversos terreiros da ilha, só foram vistos em cenas registradas nos anos anteriores ou mesmo em apresentações limitadas aqui e ali, especialmente na televisão, na esteira de um rico bailado, artesanato nas roupas e adereços dos brincantes e do couro do boi, sob as manifestações religiosas encenadas pelas índias, caboclos de penas, vaqueiros, cazumbás, Pai Francisco e Catirina.

Que tempos sombrios esses que nos impedem de desfrutar da temporada junina em sua intensidade!  O auto do Bumba meu Boi, registrado desde 2011, como Patrimônio Cultural do Brasil, no Livro de Registro de Celebrações, é de fato um de nossos maiores e melhores tesouros culturais.  A estória é conhecida e, a partir de um pequeno drama familiar, acompanhamos emocionados o levantar e o abaixar do boi, cujo miolo flutua em meio à música. O teatro encena desejo, espera, morte, ressurreição, perdão e redenção na urdidura da fé que a todos irmana.

Como não se identificar com a angústia de Pai Francisco, homem simples, cuja maior ambição é viver em harmonia com a família – mulher e filho prestes a nascer – e com o ambiente à sua volta? Mas Catirina, grávida e caprichosa, põe à prova a lealdade do marido. Como as escrituras sagradas advertem, é impossível agradar a dois senhores. A um se deverá desprezar para agradar ao outro. E, para atender ao maior dos amores, parte o nosso anti-herói a cometer um duplo crime: o primeiro, contra o animal inocente e, o segundo, contra o dono da fazenda. 

O atingido requer vingança. Atormentado por vil traição, empreende gigantesca perseguição a Pai Francisco, que não vê outra alternativa a não ser fugir da sanha de ódio a que é submetido. Encontra apoio em solidários índios no interior da mata densa, que se comovem com o relato do foragido. Surgem, então, na narrativa, os míticos cazumbás – espíritos que habitam a floresta - que também se solidarizam com a tragédia e resolvem amainá-la, trazendo o amado boi à vida e encerrando a perseguição feroz do dono da fazenda e seus vaqueiros.

O que era tristeza e lamento, agora se transforma em festa. Mais do que isso: uma união improvável acontece entre índios, cazumbás, vaqueiros, Pai Francisco, Catirina e o fazendeiro. A graça que é alcançada por um é motivo de comemoração da comunidade. Impossível não evocar as distantes lendas gregas.  Nosso auto do Bumba meu Boi traduz em peça a tragédia vivida por um homem que, em nome de seu amor, arriscou a própria vida. 

A história atravessou gerações e serviu de inspiração para o cancioneiro maranhense, legando verdadeira poesia. O que dizer de “Bela Mocidade” ‘-do Boi de Axixá? Como não se encantar com “Se não existisse o sol”- do Boi da Maioba? Falta espaço para discorrer acerca das composições de Papete, Beto Pereira, Cesar Nascimento e tantos outros que cantaram e decantaram em versos nosso tesouro.

A pandemia nos trouxe novos desafios e, entre eles, o de viver essas manifestações artísticas e culturais a distância. Mesmo assim, tem-nos roubado a oportunidade de desfrutar da proximidade do calor das fogueiras, do brilho inesquecível do couro do boi, da beleza do corpo de baile composto por índios e índias, do medo vivido no rosto de Pai Francisco, da determinação ousada de Mãe Catirina e o som, quase ensurdecedor e, ao mesmo tempo, familiar, que as orquestras, zabumbas e matracas ecoam.

Há uma falta em nós. Há uma ausência dolorida e sentida por ter esse insidioso vírus roubado nossa temporada junina. Mas cabe a nós sobrevivermos ao sentimento e à esperança de que nos junhos vindouros celebraremos novamente nossa tradição, seja em que formato for. Porque, dentro do peito do maranhense, bate um coração que desperta a cada temporada dos festejos, independentemente da realidade que o cerca.

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em 03/07/2021, em O Estado do MA

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