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Por leis de letras vivas

publicado: 13/09/2022 08h30, última modificação: 20/09/2022 12h07
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Quando nosso conterrâneo Aluísio Azevedo escreveu sua magistral obra O Mulato, sua pena serviu de arma para denunciar uma das piores feridas ainda abertas da história brasileira: a exclusão racial, causada por séculos de um escravismo aterrorizante, a qual ainda teima, em pleno século XXI, em manifestar-se por meio da falta de oportunidade e da discriminação.

Invoco a memória do escritor e de seu discurso a propósito da seguinte efeméride: no último dia 29 de agosto, comemorou-se uma década da lei de cotas, n o 12.711 de 2012, que provocou uma verdadeira revolução no sistema educacional brasileiro. Essa lei veio para atender à Carta Maior que determina, em seu artigo 205, que a educação é um direito de todos e dever do Estado. Sem distinção.

Quando da promulgação da Constituição Cidadã, um desafio enorme foi proposto: tornar prático esse princípio em um país marcado por tantas desigualdades, por séculos de exclusão e exploração da população negra e indígena. Uma dessas respostas veio justamente por meio da lei de cotas, destinada a proporcionar oportunidade de acesso ao Ensino Superior quando estabeleceu a reserva de metade das vagas nas universidades e institutos federais não apenas para os que estudaram em escolas públicas, mas também como reserva para negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda. Faço coro à Conceição Evaristo, porque desejo também que esses jovens se apropriem do que o estado brasileiro deve oferecer a eles, porque não é prêmio, é direito.

Mas, antes desse marco legal, muitas instituições já estavam adotando práticas de inclusão como reparação da injustiça educacional. Invoco o caso específico da Universidade Federal do Maranhão. O ano era 2008. Àquela ocasião, apenas 23 das 59 universidades federais dispunham de modalidades próprias de ações afirmativas com recorte social/racial. Iniciamos um enfrentamento contra a desigualdade educacional, tomando a necessária posição no decorrer do tempo que parece abrir nosso entendimento diante da realidade antes não vista.

Os dados eram desafiadores: naquele ano, em específico, a população branca representava 60% dos estudantes das universidades públicas e 66,2% das instituições particulares. A Política de Cotas que implementamos, com amplo apoio da comunidade acadêmica, por meio de Resolução editada pelo Conselho Universitário, estabeleceu 50% das vagas para a categoria universal e 50% para a de cotas. A categoria cotas estava subdividida em 25% para quem se declarasse negro (preto ou pardo) e 25% para quem tivesse estudado nos três últimos anos em escola pública (federal, estadual ou municipal). Dentro da categoria “cotas” estavam ofertadas duas vagas por cada curso: uma vaga para portador de deficiências físicas, visuais, auditivas, mentais e múltiplas; e, a outra, para quem se autodeclarasse indígena.

Saímos na frente, dispostos a tornar o abstrato da letra constitucional em concretude diária. Concomitantemente, a partir da adesão da UFMA ao programa governamental de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído no ano de 2007, vivenciamos uma expressiva ampliação do número de vagas no ensino superior. Ao aderir ao programa, apresentamos a proposta de ampliação de novos campi e consequentemente das políticas de inclusão e de assistência estudantil com vistas à maior democratização do acesso e da permanência dos estudantes no ensino superior. Saímos de 04 campi e 54 cursos para 09 campis e 100 cursos em 2022, criados de forma inovadora, tendo sido estabelecidos polos em regiões mais próximas das terras indígenas e dos territórios quilombolas localizados no estado.

Com a criação do Sistema de Seleção Unificada (SiSU) pelo Ministério da Educação em 2010, outra revolução: a diminuição do custo financeiro do processo de seleção para a universidade. Os estudantes do continente não precisariam se deslocar para fazer provas. Em 2015, instituímos o primeiro curso – único no Brasil – de graduação em Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, como forma de proporcionar capacitação na rica diversidade da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, na formação dos profissionais da educação básica.

Os números não tardaram em mostrar a alteração no quadro com que nos deparamos inicialmente, ainda que de forma lenta e gradual. De acordo com o censo da educação superior de 2018 (INEP, 2018), do total de matrículas realizadas na educação superior no país na ocupação por cor, 42% são de brancos e 36% de negros. Olhando apenas a configuração na região Nordeste, a partir das matrículas, por exemplo, deparamos com um índice de 21% de brancos e 52% de negros matriculados, e, no contexto do Maranhão, esse índice de matrícula é de 21% de brancos e 58% de negros. Há que ressaltar que, em termos da representação total da população por esses dois grupos de cor, na região Nordeste temos: 24,6% de brancos e 74,5% de negros, enquanto que no estado do Maranhão são 21,9% de brancos e 79,7% de pretos; amarelos, 1,1% e a população indígena é de 0.5%.

Levando em conta esses mesmos dados disponibilizados no ano de 2018, referentes à taxa de representatividade de negros, no Ensino Superior ela está acima da média da população negra no país, uma vez que, na UFMA, os 20.776 estudantes negros matriculados representavam 52,8% dessa representatividade. Dados mais recentes relativos a 2020 (primeiro e segundo semestres) revelam que tivemos o ingresso de 1.811 alunos no sistema de cotas, inclusos negros, deficientes, oriundos de escolas públicas e indígenas.
Os jornais, ao registrarem uma década da lei de cotas, dão conta de que o número de alunos negros cresceu em torno de 400% e já representam mais de 38% dos estudantes, ainda que 56% da população brasileira seja declarada preta. Podemos ainda avançar mais: existem atualmente, de acordo com a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), uma média de 67 projetos de lei que trazem dispositivos para aperfeiçoar a inclusão, uma vez que, no artigo 7º da Lei, está prevista a revisão do programa, após dez anos de funcionamento.

Aluísio Azevedo em O Mulato diz: “Ah! mas um dia, esse governo que não teve inteligência de seus deveres pagará bem caro a vergonhosa incúria”. E diz mais: “Vê o senhor ?! — não é por mim! mas é pela sociedade! É pelos descendentes!

Ainda que muito precisemos fazer a título de reparação, creio que estamos, pelo menos no quesito educacional, iniciando passos que não possam retroceder, até que alcancemos a estatura de um país cujas leis sejam escritas com letras vivas, para restaurar as páginas de nossa história.

Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA
Professor Titular da UFMA
Médico Nefrologista
Membro da Academia Maranhense de Letras
Membro da Academia Nacional de Medicina

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