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Livros: os baobás africanos

publicado: 01/12/2021 10h27, última modificação: 01/12/2021 16h11

Debrucemo-nos sobre um álbum de retratos de um mundo, cujas fotografias remetem a palavras como limite e barreira redimensionados não por uma perspectiva do óbvio; os dramas de imigrantes contados sob outra perspectiva que não a óptica dos colonizadores, e as dificuldades de refugiados — não apenas uma nota a ser ignorada pelo noticiário — e teremos uma restrita definição do imaginário de Abdulrazak Gurnah, o escritor africano que levou o Nobel de Literatura deste ano. Ele tem o mérito de transportar para as páginas um olhar em primeira pessoa, fruto de suas raízes e de sua forma singular de reinterpretar a realidade outrora dissecada por olhares distantes. 

Nascido em Zanzibar, estabeleceu-se na Inglaterra, onde foi professor de literatura pós-colonial na Universidade de Kent. Autor de obras como Paradise — que narra o comércio, que tem por base a venda de seres humanos; Desertion, um aplaudido romance; By the Sea, sobre conexões entre imigrantes entre África e Reino Unido; e Afterlives, uma obra que trata de refugiados (ainda sem versão em português). Ele levou o prêmio depois de três décadas sem nenhum africano ser laureado. O último que havia levado o prêmio foi o nigeriano Wole Soyinka, em 1986.

A disputa pela honraria também tinha outro concorrente de peso (este permanente): o queniano Ngugi wa Thiong'o, professor emérito de inglês e de literatura da Universidade da Califórnia, que se tornou uma espécie de lenda viva na África. Em português, a escrita de Thiong'o pode ser conferida em “Grão de Trigo”, de 1967, um clássico que trata sobre a independência do Quênia. Aos 81 anos, ele permanece ativo como um dos porta-vozes importantes do continente africano.

Aliás, a África não deixa nada a desejar no que há de melhor na literatura da atualidade. O conhecido Mia Couto é uma constatação de minha fala. Único estrangeiro a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, o moçambicano se aventura pelo realismo mágico ao nos apresentar um mundo que passeia entre realidade e fantasia. “Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências”, sintetiza em Antes de nascer o mundo, obra de 2009. Um quê de Grande Sertão fica no ar, e o drama de Fabiano, em Vidas Secas, encontra seus ecos também. Os iniciados na literatura brasileira me entenderão.

Citei nomes importantes entre homens, mas seria injusto se me esquecesse das africanas. Com uma fala tomando como cenário a pandemia causada pela covid-19, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie escreveu em Notas sobre o luto sua experiência pessoal com a tragédia que ainda abala a humanidade. Ela perdeu o pai para o coronavírus, e o fato de não o ter visto algum tempo intensificou a experiência, que foi transformada em manifesto. A escritora é autora de livros que trabalham a temática do racismo e do feminismo; suas palestras no TED são muito populares.

Outras duas autoras formidáveis nigerianas são Buchi Emecheta e Florence Nikiru Nwapa, esta última considerada uma espécie de mãe da literatura africana nos últimos tempos. Lembro ainda o nome de Ana Paula Tavares, angolana, que já declarou ter sido influenciada pela escrita e pela literatura brasileiras, tendo participado de diversos eventos em nosso país.

Se as palavras desses autores e dessas autoras foram meus rocinantes nesta cavalgada pelo solo africano, uma ode há de ser tecida aos que ainda resistem na jornada do culto à literatura em todos os lugares do planeta e que teimam em construir mundos, resgatar memórias e ousar suscitar ideias discordantes num planeta cada vez mais pasteurizado pela rede mundial que a todos interliga. Uma rede que também esmaece as diferenças que nos tornam tão únicos, por meio de seus estandartes, os livros. Afinal, como o próprio Gurnah declarou em entrevista ao Publish News, no início deste novembro, na Feira do livro Sharjah, os livros são “a voz que narra e que penetra na mente e no coração”, são também sementes plantadas na história para fazer germinar e crescer os baobás da cultura africana. Conforme cunhou o poeta baiano Castro Alves, autor dos épicos Navio Negreiro e Vozes d’África, em O Livro e a América,  “Oh! Bendito o que semeia/ livros...livros à mão cheia/ e manda o povo pensar./ O livre caído n’alma/ é germe – que faz a palma,/ é chuva – que faz o mar”.

 

Natalino Salgado Filho

Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

 

Revisão: Jáder Cavalcante

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