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ENTREVISTA: Aluna egressa de Medicina realiza trabalho de destaque no SUS em prol da população negra

publicado: 20/05/2022 08h00, última modificação: 19/05/2022 13h25

“Durante a faculdade, senti que só via sentido em exercer a Medicina se fosse no SUS. A ideia da medicina luxuosa nunca me atraiu. Eu percebi desde cedo um papel político em estar nesse lugar, uma capacidade de poder fazer e propiciar mudanças." Essa afirmação ilustra bem a motivação de vida e de carreira de Rayssa Okoro, graduada em Medicina pela UFMA desde o ano de 2020, hoje na cidade de São Paulo e atuando justamente no Sistema Único de Saúde (SUS) como médica generalista. Seu trabalho, conforme especificou, tem como foco a atenção básica da população em situação de vulnerabilidade, em sua maioria negra.

A profissional de saúde, concedeu uma entrevista à Diretoria de Comunicação (DCom) da Superintendência de Comunicação e Eventos (SCE) da UFMA, e falou sobre suas inspirações para a escolha da profissão, os desafios ocorridos na pandemia e sua experiência na rede pública de saúde. Além de comentar a respeito da sua motivação para a cocriação do coletivo Negrex e seu trabalho como militante da causa.

DCom: Quando você decidiu que cursaria medicina e qual foi sua principal inspiração para escolher o curso?

Rayssa Okoro Decidi cursar medicina ainda na infância. Venho de uma família em ascensão social, sou apenas a segunda geração da família que teve acesso à universidade, e muitos tios meus, por exemplo, dessa primeira geração, não tiveram. Então o caminho natural para famílias assim é querer cursar Medicina ou outros cursos que tragam esse tipo de ascensão.

DCom: O que te motivou a trabalhar no SUS e focar seu trabalho no atendimento à população negra?

RO – Durante a faculdade, senti que só via sentido em exercer a medicina se fosse no SUS. A ideia da medicina luxuosa nunca me atraiu. Eu percebi desde cedo um papel político em estar nesse lugar, uma capacidade de poder fazer e propiciar mudanças, mesmo sem entender muito bem na época o que isso significava. Conforme fui estudando mais, vivenciando mais, entendi o papel que eu tinha como médica negra, pela representatividade. E também, conforme fui me interessando em estudar e pesquisar mais sobre a saúde da população negra, assumi como compromisso pessoal aprender cada vez mais a cuidar da população que eu represento, que é a maioria dos usuários do SUS e que é a mais negligenciada em termos de saúde e outros direitos básicos, no Brasil e no mundo.

DCom: Como foi a experiência de se formar no mesmo ano do início da pandemia?

RO – Foi bem desafiador. Fases de transição já são desafiadoras e difíceis por si só. Então, precisei lidar com um cenário em que eu tinha muitas inseguranças normais de quem acaba de sair da faculdade e ter que lidar com uma doença nova, desconhecida, num contexto social e político extremamente caótico.

DCom: Como foi trabalhar na enfermaria clínica contra a covid-19?

 RO – Difícil. Como eu falei, pouco se sabia sobre a covid, e o medo era uma constante. Medo de não conseguir cuidar e salvar, de pegar a doença, de transmitir para as pessoas que se ama. Vivenciar uma realidade de mortes constantes e descaso governamental na contenção da pandemia tornou isso tudo muito mais difícil. Você se dá conta de que nós não somos heróis, temos limites de atuação, não conseguimos salvar todas as vidas e temos recursos limitados. Lidar com a falta de recursos básicos, como equipamentos de proteção e medicamentos básicos, foi bem difícil. É difícil lidar com descasos nesse nível porque transpõe o que podemos fazer na condição de simples mão de obra. Eu posso ter o melhor conhecimento especializado do mundo, mas, sem recursos básicos, que são responsabilidades do Estado de garantir, nos deparamos com angústias, indignações, sofrimentos e limites.

DCom: Qual importância você percebe na sua representatividade, como mulher negra exercendo a medicina em prol dos menos favorecidos?

RO – A medicina sempre foi um lugar de poder. Ainda é. Historicamente, construiu-se em cima desses corpos subalternizados, expostos a todo tipo de processo de vulnerabilização sem qualquer proteção do Estado. Essa dita ciência se construiu para servir os grupos que estão desde sempre no poder. Ocupar esse lugar é falar para todas as pessoas iguais a mim que é possível mudar essa narrativa. A minha imagem pode servir de inspiração para algum menino ou menina negra que acha que não pode sonhar em ser médico ou médica. Pode e deve. Nesta posição, eu também consigo usufruir esse lugar de poder e realizar mudanças em larga escala, seja pautando diretrizes, políticas públicas em saúde ou simplesmente cuidando bem de outra pessoa negra.

DCom: Você é cofundadora do coletivo Negrex. Com que intuito o grupo foi criado e quais atividades são desenvolvidas?

RO – O coletivo foi criado inicialmente com o propósito de acolher estudantes negres da medicina de todo o Brasil. Percebemos que tínhamos experiências parecidas, vivenciávamos violências diárias relacionadas ao racismo no meio médico e precisávamos nos fortalecer coletivamente para sobreviver e também para pautar mudanças nesse cenário. Com o tempo, o coletivo foi aumentando e desenvolvendo várias outras atividades. Hoje ele é organizado em locais que realizam atividades como visitas a escolas públicas, aulas relacionadas à saúde da população negra, propõe a criação de disciplinas como “Saúde da população negra nas universidades”, desenvolvem pesquisas e, acima de tudo, acolhem estudantes negros dentro das faculdades.

DCom: Você também trabalhou na área rural maranhense. O que a motivou a fazer essa escolha?

RO – Trabalhei na área rural do Estado do Maranhão por um tempo. Escolhi porque considero a formação médica extremamente deficitária quando o tema é atendimento e cuidado de populações vulnerabilizadas. Esse sempre foi o meu interesse e, desde a graduação, tentei ao máximo estudar sobre isso. O conhecimento biomédico ofertado pela faculdade de medicina pouco contribui para um cuidado em saúde amplo. Esse tipo de cuidado requer compreensão acerca da complexidade dos contextos sociais, do processo de adoecimento, da determinação social da doença. Também quis me aproximar da realidade rural do meu estado. Pouco se fala das especificidades da área rural do Maranhão e é nessas áreas que muitas vezes se concentram os piores índices de desigualdade social, mesmo sendo um dos pilares econômicos do estado. É um contexto delicado, complexo, repleto de negligências estatais, e eu quis estar lá dentro para poder retribuir e aprender.

DCom: Quais principais aprendizados você leva da sua formação na UFMA?

RO – Ser formada no Nordeste, no Maranhão, me trouxe uma experiência que eu não teria em outros estados. Por mais que a medicina seja um curso isolado dos outros, tive a oportunidade de vivenciar um pouco de outros departamentos e conhecer pessoas de outras formações que me inspiraram bastante. Por exemplo: convivi com professores e alunos do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – Neab – e participei de um grupo de pesquisa da Psicologia voltado para estudos em questões raciais que me acolheu e serviu de inspiração para continuar neste caminho.

Por: Bruna Castro

Revisão: Jáder Cavalcante

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