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Discurso – solenidade de Professor Emérito 30.10.2021

publicado: 30/10/2021 18h13, última modificação: 03/11/2021 21h56

Senhoras e senhores,

Educar esta sociedade com olhos na sociedade futura – esse é um dos aforismos do filósofo Immanuel Kant, um ardoroso defensor do conhecimento como ponte para o aperfeiçoamento individual e coletivo. E, se inicio minha fala citando este grande pensador, isso se deve ao fato de que os homenageados desta solenidade cumpriram fielmente o mister que lhes foi incumbido, comensais do banquete do saber.

Mais do que estruturas físicas, uma universidade se ergue e se perpetua pelo delicado trabalho tecido por homens e mulheres que, como artífices do patrimônio imaterial que nos distingue, ultrapassam os umbrais temporais com suas contribuições para a formação de profissionais nessa rica experiência de vida que se chama docência. De forma abnegada, não se omitiram de seu chamado. Como modernos isaías, ouviram o apelo para o chamado da missão e disseram sim, fiéis aos conselhos pregados por Antonio Vieira no seu conhecido Sermão da Primeira Dominga do Advento, registrado na capela Real, em 1650:

 Sabei, cristãos, sabei, príncipes, sabei, ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos

A Universidade Federal do Maranhão tem muito a fazer em seu presente e muito a prever sobre o futuro. E tem reconquistado, em vias de atualização, as mudanças do mundo e enfrentado as contingências próprias da política interna ou das surpresas sociais que poderiam paralisar a instituição. Elas não avisam e não esperam, e, apesar delas, avançamos, crescemos e multiplicamos inovação, acesso e recursos de qualidade.

Por isso estamos aqui. Muitos são os resultados, muitos os projetos e as imposições do presente que, naturalmente, nos levam à frente de onde já chegamos. Mas nada deve nos deixar esquecer o passado nem abrir mão da memória e do reconhecimento dos ideais e talentos que nos antecederam e que trabalharam para que a UFMA mantivesse seu principal projeto: o de melhorar o mundo. Melhor dizendo, tudo o que fazemos hoje é continuidade das fatias do trabalho desenvolvido pela competência, inteligência e amor de cada um dos agraciados na construção deste nosso patrimônio institucional.

O reconhecimento que oficializamos, neste 2021 quase pós-pandêmico, é uma tradição que remonta às instituições de ensino superior quando, da Idade Média à Renascença, com frequência, usava-se a expressão latina Magister dixit (O mestre disse), utilizada para se construir um argumento baseado na autoridade inquestionável de um grande mestre. Fiel ao legado herdado dessas academias seculares, em especial as francesas e as americanas, a Universidade Federal do Maranhão também se inscreve como aquela que valoriza os excepcionais mestres com o título de Professor Emérito, uma das mais supremas honrarias na carreira do magistério. Não chegam os distinguidos a este momento apenas escudados por palavras. Aqui invoco a fala de Ájax, personagem singular de Sófocles, quando se nos adverte: “não decidais acerca da virtude tendo em vista os discursos, porém mais os atos”.

São seus predicados singulares que os tornam distintos, senhoras e senhores. Dores suportadas na caminhada, incompreensões diversas, momentos de amargura e de sofrimento entremeados com a satisfação da lição ensinada, da convivência harmoniosa com alunos e colegas, com a alegria que o processo ensino-aprendizagem proporciona. O real não está no início nem no fim, ele se mostra para a gente é no meio da travessia, nos ensina Riobaldo, o mítico personagem de Guimarães Rosa, que também constata: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas”.

A outorga do título de professor emérito é mais que uma forma de valorizar os colegas pelo esforço e dedicação contínua, é a celebração alegre do triunfo de suas inteligências. O termo emérito vem do latim emeritus, que significa merecimento, mérito por sua capacidade de ir além do que se espera, dos mares navegados, das terras mapeadas. No dizer de Ìtalo Calvino, “só depois de haver conhecido a superfície das coisas é que se pode proceder à busca daquilo que está embaixo. Mas a superfície das coisas é inexaurível”. Os vossos feitos, ilustres colegas, são âncora de seu passado e o luminar de vosso presente.

Senhoras e senhores,

O passado e o futuro são duas forças antagônicas que o presente materializa e une, em simbiose indestrinçável quando nos referimos à experiência humana. Como na figura instigante de Paul Klee que projetou o Angelus Novus – a partir da releitura de Janos – experiências vividas com sonhos a alcançar são amálgama carregados por vossos corações, “pois há de crescer no campo uma certeza que a mão que agora o fruto não alcança”, como bem José Chagas nos adverte.

Trechos da vida pessoal de cada um de vocês se confundem com a própria história da Universidade Federal do Maranhão. De maneira açodada, fizeram com que ela se tornasse uma das principais fontes da ciência, da cultura e das artes do nosso querido Estado, que é e que foi o espaço geográfico e subjetivo de tantos mestres, como Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, João Lisboa, Odorico Mendes, Gomes de Souza, e tantos outros agentes de renome nacional, como Mário Martins Meireles e Nascimento Moraes, personalidades que nos ilustraram tanto nas letras literárias, quanto nas práticas do magistério.

O Apóstolo São Paulo, em epístola dirigida ao jovem discípulo Timóteo, confessa ter combatido o bom combate, encerrado a carreira e guardado a fé. O combate, ao qual ele chama de bom, com certeza o ensinou a preservar a fé que o animava a prosseguir na carreira para a qual fora chamado. Dela não vos esqueçais, senhoras e senhores, neste patamar que agora alcançais.

É ela que nos alenta nesses dias em que seres humanos teimam em deixar suas vidas a reboque das intermediações da tecnologia que, se por um lado aproximam, por outro distanciam e despersonalizam as relações. Como bem já cunhou o filósofo Luciano Floridi, vivemos na era do onlife, onde não há mais distinção de categorias de conectados e desconectados, no qual estamos todos mergulhados nessa nova categoria de ser e fazer. As certezas que cultivamos durante todos esses anos foram abaladas e vivemos um admirável mundo novo, expressão cunhada por Aldous Huxley. Mas o fundamento do tempo continua sendo a memória, como bem alerta Delleuze, que, de forma lúcida, nos recorda que somos nós, homens e mulheres, senhores das máquinas, agentes indispensáveis na emoção da transmissão do ensino, no prazer compartilhado em dois lados ao mesmo tempo opostos e complementares dessa aventura fantástica da descoberta de algo novo.

Em especial, os professores, agentes voluntários de transformação, joões batistas a clamar no deserto da ignorância, seres temporários por mortais que são, mas inesquecíveis na memória de um coração grato. Nas palavras ternas e doces de Cecília Meireles, escritas em 1930, o ideal de professor é alguém acima da temporalidade.

Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade segura e complexa, essa é o professor. (... )E ter o coração para se emocionar diante de cada temperamento. E ter imaginação para sugerir. E ter conhecimentos para enriquecer os caminhos transitados. E saber ir e vir em redor desse mistério que existe em cada criatura, fornecendo-lhe cores luminosas para se definir, vibratilidades ardentes para se manifestar, força profunda para se erguer até o máximo, sem vacilações nem perigos. Saber ser poeta para inspirar. Quando a mocidade procura um rumo para a sua vida, leva consigo, no mais íntimo do peito, um exemplo guardado, que lhe serve de ideal. (...) Como seria admirável se o professor pudesse ser tão perfeito que constituísse, ele mesmo, o exemplo amado de seus alunos! E, depois de ter vivido diante dos seus olhos, dirigindo uma classe, pudesse morar para sempre na sua vida, orientando-a e fortalecendo-a com a inesgotável fecundidade da sua recordação.”

Essa mítica figura descrita pela poetisa é um ideal, mas cujo vislumbre se enxerga nas almas daqueles que superaram as próprias vicissitudes e avançaram, como diz o autor do livro de Hebreus, como se vissem o invisível. E é na esteira da gratidão que a Universidade Federal está novamente em festa: Os portais eternos da nossa Catedral do Conhecimento se abrem e os recebem como merecedores de tamanha honraria.

Nesta oportunidade quero me irmanar com todos os distinguidos, com quem partilho a alegria, a dor, a esperança, as lutas e vitórias nas lides do magistério. Vocês fizeram por merecer. Parabéns!

 

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, reitor da UFMA, titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina. 

Revisão: Jáder Cavalcante

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