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O médico diante dos infinitos particulares

publicado: 05/02/2021 15h31, última modificação: 05/02/2021 15h31

Humanizar e tornar a prática médica dotada da excelência que lhe é cabível – eis a proposta da medicina narrativa, assunto que foi abordado no Programa de Verão da Academia Nacional de Medicina, com a temática Humanismo e Saúde, em homenagem ao acadêmico Ricardo Cruz. Com a abertura do nosso presidente Rubens Belfort Jr. e coordenação do confrade Marcello Barcinski, esse painel contou com as presenças especialíssimas de Anna Mallet, da UFRJ e do Acadêmico da ANM, J.J. Camargo, entre outros. 

O grande nome, por trás dessa fantástica proposta de nova visão de Medicina, é Rita Charon, criadora e diretora do Programa de Medicina Narrativa da Columbia University, nos Estados Unidos. Ela propõe uma nova forma de enxergar o paciente, através de um múltiplo olhar, levando em consideração sua história de vida, sua família e valendo-se, muitas vezes, da literatura e da arte.

Todos nós, que aderimos à senda hipocrática, vamos sendo enriquecidos, ao longo da jornada, com as experiências que acumulamos. Muito mais nos beneficiamos com as histórias que nos são apresentadas sob a ótica do que Marisa Monte chama de infinito particular: para nós, o paciente, alvo de nossa atenção e dedicação.

Mudar a perspectiva de nossa prática, (re) aprender o real sentido do que se entende, num curioso binômio que agrega o ser e o estar, é uma proposta instigante.  No dizer de Gabriel García Márquez, no conto “A santa”: “...os lugares que haviam sido meus e sustentavam minhas nostalgias eram outros e alheios”. Esse outro, na Medicina, o paciente, é que molda nossa forma de ser e agir. Afinal, ninguém é exato nem feliz, reconhece Fernando Pessoa. São nossas incompletudes que nos tornam quem somos: nada mais, nada menos.

Rubem Alves diz que toda alma é uma música que se toca. Aquele que se nos apresenta traz consigo, em meio às dores e sofrimentos, também os acordes, os sentimentos, desejos e aspirações. E nada revela com acurácia esta imprecisa realidade humana, como a arte que consegue traduzir tão bem as coisas para as quais as palavras são ou desnecessárias ou imprecisas.

Naquela tarde memorável dos relatos que constam do painel, um fio de Ariadne se sobressai: cada um dos participantes revelou histórias particulares de como o cotidiano, o ordinário e o aparentemente banal lhes invadiu a alma, permitindo que, no dizer de Drummond, enxergassem poesia em meio às pedras. À semelhança de habilidosos artesãos, elaboraram um rico e variado mosaico de sensações por meio das palavras. Ouso afirmar: aqueles e aquelas veem além dos que outros e outras só enxergam. 

Sou daqueles que defendem – e o fiz já em diversos artigos publicados – que muito mais do que a missão de aliviar dores – sempre - e curar males – quando possível, os médicos não podem e nem devem perder a capacidade de ouvir, mesmo quando não há nada a ser escutado. Invoco novamente Rubem Alves que, em seu “Variações sobre o prazer”, faz a distinção, num diálogo extremamente interessante, dos médicos que apenas dão o remédio e daqueles que falam para curar. O primeiro remédio é a atenção sincera. Os outros são meros complementos. Enxergar o paciente como alguém de fato importante, faz parte de um contexto muito maior, eis o princípio universal e eterno.

Os evangelhos relatam que Jesus recitou uma citação de Moisés, quando afirmou que nem só de pão vive o homem, a um diabo que só enxergava a concretude, o efêmero, a matéria. A fragilidade das nossas vidas nos irmana, nós, os médicos e aqueles, os pacientes. Mas, na maioria das vezes, o que os humanos querem é sarar. Não desejam céu nenhum, pensa Riobaldo, o mítico personagem de Guimarães Rosa.

E, enquanto os humanos querem sarar, esquecem o que vem da enfermidade e o que traz a cura, o para-além da matéria, mais que remédio, mais que pão: a poesia da arte da humanidade e do diálogo que restauram mais que o corpo, porque trata cada paciente não como um organismo em funcionamento, mas como um infinito particular de pequenez e grandeza.

 

Natalino Salgado Filho
Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina.

Publicado em O Estado do MA, em 06/02/2021