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Sobre também ser Outro

publicado: 27/06/2022 13h10, última modificação: 27/06/2022 15h38
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Reportagem publicada pela BBC esta semana traz uma ideia curiosa e, ao mesmo tempo, fascinante: a possibilidade de cada um de nós criar seu próprio gêmeo para uma vida inteiramente digital. Aquela frase muitas vezes falada entre nós “se eu pudesse ser dois para dar conta de tantos compromissos” parece ter encontrado uma solução.

Estamos vivendo a era em que tudo o que existe no mundo real está sendo replicado digitalmente - nossas cidades, nossos carros, nossas casas e até nós mesmos. O conceito de gêmeo digital é relativamente novo. Data de 2002. Naquele momento, a ideia estava um pouco à frente das possibilidades que os programas de computador e equipamentos poderiam permitir. A partir de 2010, entretanto, o conceito ganhou vida. Trata-se de criar uma cópia virtual exata de algo real.

As possibilidades são quase infinitas. Um gêmeo virtual pode ser submetido a todo tipo de teste e situações para melhorar sua cópia real ou antever e melhorar algo, antes mesmo de sua existência material, barateando custo e reduzindo o tempo de produção.

Desta forma, o avanço natural da ciência parece esperado, como se fosse algo simples e banal, visto que o poder de processamento das máquinas caminha célere para criar “realidades” cuja aparência é capaz de enganar nossos olhos.

A técnica deepface, por exemplo, que é usada para reconhecimento facial, já produziu versões de pessoas reais, alterando imagens reais, com discursos que estas pessoas jamais proferiram. Mas a questão é ainda mais profunda. É filosófica. Vem da discussão milenar sobre nossa divisão ontogênica, pela possibilidade de duas versões de nós em que uma carrega o mal e a outra, o bem. Como se houvesse dois habitando a mesma mente e corpo, porém muito diferentes entre si.

O Apóstolo São Paulo, em sua Carta aos Romanos, capítulo 7, deplora esta condição ao dizer que nem mesmo entendia seu modo de agir, pois via em si mesmo duas forças se digladiando. Uma que tendia para o bem e a outra exatamente para o sentido contrário.

A literatura, por sua vez, explorou este tema de forma magistral. A obra prima O Duplo, de Dostoievsky (1840), descreve um homem solitário que aos poucos vai se dissociando de si e, no processo de sua alucinação e delírio, cria uma versão de si mesmo, seu inimigo, um farsante e impostor, que tenta e consegue muitas vezes, ter aquilo que ele mais desejava, inclusive a mulher por quem tem um amor platônico.

Esse tema continuou sendo explorado, até mesmo em comédias que fizeram o maior sucesso, como a encenada por Eddie Murphy, cujo filme ganhou o nome em português de “Professor aloprado” (1996) e, antes dele, Jerry Lewis com “O professor maluco” (1963). Esta aparente divisão de nosso ego tem sido motivo de fascínio e perplexidade.

No final do século XIX, foi publicado por Robert Louis Stevenson outro clássico, O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde ou O médico e o monstro (1885), como ficou mais conhecido. A novela narra sobre um médico, homem distinto e caridoso, assim reconhecido em sua comunidade. Preocupado com este dilema humano e com propósito bem intencionado, ele produziu uma poção com o objetivo de separar o bem do mal no homem.

O próprio Dr. Jekyll foi a cobaia de seu experimento. Ao fazê-lo, criou uma criatura “livre” de todas as convenções e princípios morais, um verdadeiro vilão inescrupuloso, Edward Hyde. Homem cujos modos e aparência causava mal-estar e aversão nas pessoas que o conheciam.

A obra cria um suspense quando um advogado é atraído para um mistério. Um homem mata uma garota e logo em seguida a família da menina é indenizada com um cheque de uma pessoa distinta e respeitada da sociedade londrina, dr. Jekyll. Recomendo a leitura.

O que nos espera hoje, cada dia mais próximos de uma inteligência artificial autônoma, cercados por promessas do metaverso, em cujos mundos teremos outra versão de nós, os avatares capazes de ser e viver uma realidade completamente feita de bits? Precisaremos e poderemos ser Outros como diz Manoel de Barros em seu poema “Retrato do artista quando coisa”? Creio que a ciência e a tecnologia ainda muito nos surpreenderão. Cabe a nós não abrirmos mão do que é essencial e indispensável, sob pena de perdermo-nos de nós, diluindo as fronteiras do nosso existir.

Natalino Salgado Filho, MD.PhD
Reitor da UFMA
Médico nefrologista
Membro da Academia Maranhense de Letras
Membro da Academia Nacional de Medicina

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